Este projeto tem como objetivo destacar os expoentes negros do município de Juiz de Fora e legar exemplos positivos de sucesso de pessoas pretas para as futuras gerações. A primeira reportagem foi sobre a advogada Carina Dantas, o segundo entrevistado foi o poeta Antônio Carlos Lemos Ferreira, o terceiro foi o Professor Geraldeli Rofino, o quarto o líder sindical Paulo Sérgio Pena Félix, agora chegou a vez do gestor Fernando Luiz Eliotério.
Sua trajetória foi marcada com dificuldades, mas nada que tirasse a gana de lutar pela saúde dos negros e periféricos. Fernando Luiz Eliotério nasceu em uma família muito pobre em 30.10.1965, em Presidente Bernardes – MG, mas logo aos 10 meses perdeu o pai Geraldo Pelagio Eliotério que fazia trabalhos rurais por conta própria, plantando milho, feijão, banana e laranja num terreno próprio. “Papai não chegou a completar 40 anos”, lembrou com pesar. Fernando se lembra que sua mãe Maria Isabel Eliotério, que também era do campo, colhia flores de Marcela para fazer travesseiros. Ao mencionar a família, Fernando lembrou de homenagear seus avós de sangue, mas confessa que nunca procurou de verdade sua ancestralidade por vergonha e um pouco de medo do passado que muitos negros querem esquecer. Só em 2010 começou, em paz, a escrever sua biografia e trajetória, sentindo a necessidade de deixar sua história contada para seus filhos e netos. Iniciou relatando que descende de escravos afrodescendentes e por parte de mãe mais pro lado indígenas originários do Brasil. Fernando só conheceu pessoalmente seus avós por parte de pai, Maria e Pedro Eliotério, que já tinham uma pequena propriedade na região onde nasceu. Dos seus avós por parte de mãe ele ainda sabe pouco, pois quase nada foi transmitido entre as gerações: “tivemos uma história muito sofrida com os pais e avós vivendo ainda com trabalhos análogos à escravidão”, lamenta.
Com tanta dificuldade após a morte do marido, a mãe de Fernando se viu constrangida a “doar os 6 filhos”. Imaginem a dor da mãe de saber que naquela época ainda existia um tipo de “escravidão”, mas por sobrevivência foi impelida a entregar os irmãos de Eliotério para fazendeiros na condição de escravos. Meus irmãos sofreram muito nas mãos dos fazendeiros, eles eram obrigados a acordar 3 horas da madrugada e irem buscar gado e outras tarefas; sacrificados, não tiveram oportunidades de estudar. Por sorte, contou Eliotério, “fui adotado em 1966 por um idoso que queria muito ter um filho”. Seu pai adotivo era José Bertoldo Teixeira que o recebeu ainda com 1 ano de vida e o criou junto às filhas Eugenia Santiago Teixeira (hoje considerada sua mãe adotiva do coração), Zilda e o filho João. A sorte ou destino reservou-lhe muito carinho e ele lembra que junto com o irmão adotivo João costumava vender bananas e laranjas nas ruas do município.
Uma das experiências mais doídas que sofreu de racismo estrutural foi dentro da própria família estendida, que não compreendia o carinho de seu pai José Bertoldo e sugeriam a ele colocar o “filho adotivo negro” para trabalhar. “Isso doía e ainda doe muito”, confessa Eliotério. Ele lembra que nada recebeu de mão beijada: “quando estudava, tinha que andar 7 km de ida e outros 7 km de volta”. Mas sua resiliência o levou a ser o único da família a ter graduação, pois infelizmente os irmãos foram mantidos semi-analfabetos. “Todos nós aprendemos na luta e ainda hoje não é fácil”, as vezes precisamos engolir seco os comentários, evitar responder ou se “fazer de bobo”, fingir que não se escutou ou se convencer que não foi com ele, tudo isso para evitar brigas e maiores confusões. O caráter íntegro de Eliotério releva os atos de pessoas que ainda não compreendam o que estavam fazendo: “é racismo estrutural na pele”.
Em 1980 os Teixeira se mudaram para Juiz de fora e foram morar no Bairro Nossa Senhora de Fátima, num loteamento irregular. Com tanta vivência, aos 15 anos já participou da fundação da Associação de Moradores. Ele que tinha perdido dois anos sem estudar, voltou para a escola, hoje Escola Municipal Presidente Tancredo Neves no bairro São Pedro. Um momento histórico para Fernando aconteceu ainda aos 15 anos quando tirou sua primeira foto, na escola. A falta de registros é uma marca de uma infância e juventude apagadas pelo descaso do poder público e a pobreza da família. Mas desse tempo ele se lembra com alegria da boa convivência com os padres alemães e por ter entrado para o movimento da igreja católica. Logo foi eleito presidente do Grêmio Estudantil da Escola e para ajudar em casa, trabalhava como jardineiro pelas casas e chácaras da cidade alta. Sua primeira experiência de liderança foi uma reunião com o governador Tancredo Neves, pois ele tinha sido eleito pelos estudantes para defender as escolas da periferia lá no Teatro João Carriço: “foi marcante para minha carreira a atividade de defender a comunidade”.
Logo em 1982-1983 se destacou por ter sido muito combativo diante do prefeito Tarcísio Delgado, sendo enfático pela regularização de posses e reivindicando obras de infra-estrutura para a periferia. Eliotério se despontava como liderança e defendia com unhas e dentes os negros e menos privilegiados das comunidades, por isso, durante muito tempo, ficou com uma fama ruim por seu “bom combate”. Mas logo sua liderança foi reconhecida e chamado para compor os governos justamente por suas posições firmes e decididas em defesa das comunidades periféricas. Assim trabalhou na assessoria do próprio prefeito Tarcísio Delgado de 1983-1988 e com o prefeito Custódio Mattos de 1993-1996. Dedicado, terminou ensino médio e nesse período ainda concluiu o curso Técnico de Administração no Instituto Vianna Júnior.
Sempre muito presente no movimento comunitário, foi eleito presidente da Associação de Moradores dos Bairros Nossa Senhora de Fátima e Cidade Universitária para a gestão 1985-1986. Também tinha sido eleito para a direção da União Juizforana de Sociedades Pro Melhoramentos de Bairros e Distritos (hoje UNIJUF) e logo eleito presidente por dois mandatos de 1997 a 2005. Mas as necessidades da periferia eram enormes e Eliotério obstinado a buscar melhorias, tanto que em 2006 se envolveu também como diretor da Federação das Associações dos Moradores do Estado de Minas Gerais FAMEMG, onde foi eleito presidente por 2 mandatos. Em pouco tempo, já em 2003, sua fama o levou para Brasília na direção da Confederação Nacional de Associações de Moradores CONAM. Convidado para ser conselheiro suplente no Conselho Nacional de Saúde CNS, começou a viajar todos os meses para Brasília. Fernando tem um legado de muitos feitos pelo município e sua participação na política já era uma constante. Ele sempre foi do PCdoB, mas foi só em novembro de 2006 que assinou a ficha de filiação e ingressou via Comitê Estadual em BH.
Estabilizado em Juiz de Fora, em 2007, foi morar no Bairro Santos Dumont com a atual companheira Eliane. Em 2012 tiveram o filho Lucas, mas Eliotério ainda é pai de 2 filhas do primeiro casamento, Lidia e Lisandra. Fernando teve uma caminhada profissional brilhante, desde 1984 era servidor federal da CONAB, demitido injustamente no governo Collor e anistiado 1995 pelo presidente Itamar Franco, só voltou em 2008 cedido ao Ministério da Educação e foi trabalhar na UFJF no gabinete do reitor Henrique Duque, que o indicou para o setor financeiro do Hospital Universitário. Mas o Brasil precisava dele na capital federal e em diversas viagens para Brasília, logo se tornaria conselheiro titular do CNS, passando a lutar pela pauta da necessidade de aumentar a relevância dos instrumentos de gestão financeira. Quando entrou, era uma comissão esvaziada e desprezada, mas ele revolucionou com seu jeitinho mineiro e conduziu as mudanças, melhorando a CNS nos setores de pessoal, da participação popular e lutou pelo aumento de orçamento para a causa da saúde pública brasileira. Em 2012, já no governo Dilma, depois de 9 anos no CNS, aceitou o convite do Ministro Alexandre Padilha para o cargo de assessor técnico do Ministério da Saúde, ligado diretamente ao gabinete do ministro com a tarefa de articular com os movimentos sociais e conselhos de todo Brasil, além de representar o Ministro em algumas oportunidades.
Foi gratificante entrevistar Fernando, uma pessoa de garra que saiu da pobreza e chegou no governo federal fazendo história no setor de saúde pública e na defesa das comunidades. Em 2013 mudou-se com toda a família para a capital federal, onde pode, agora com menos viagens, terminar em 2014 a faculdade de Administração Pública na UNISUL. Seguindo a trajetória, concluiu em 2015 a Especialização em Saúde Pública na UNIELA e já concluiu a pós-graduação em Gestão Federal do SUS, no Instituto Sírio-Libanês de São Paulo. Já era um desejo de Fernando voltar para Juiz de Fora e a oportunidade veio em 2016 com o convite para ser o assessor do deputado federal Wadson Ribeiro do PCdoB, que o nomeou chefe de gabinete da Câmara Federal montado em Juiz de Fora. Em 2020 se tornou candidato a prefeito, com articulação de Brasília por força de Renato Rabelo, presidente de honra do partido. Rabelo queria ter candidaturas de negros de periferia em cidades de grande porte e o nome de Fernando Eliotério foi a aposta de Rabelo para a cidade.
Mesmo para o vivido líder comunitário, sabia que a experiência não seria fácil, a falta de aporte de recursos eleitorais dificultou sua campanha. Passada as eleições, Eliotério sabe que deixou um legado enorme, como primeiro candidato do PCdoB em JF. Como ele mesmo define: “combati um bom combate, subiu os morros e inspirei crianças da periferia”. Fernando tem certeza que abriu caminho e mostrou aos jovens negros que eles também podem sonhar e ser candidatos a prefeito e vereadores. Seu legado foi o empoderamento das futuras gerações negras de periferias em um município branco e reacionário à subida dos negros ao poder. Mas sua derrota o levou ao próximo desafio, em 2021 se desligou da CONAB e a prefeita eleita Margarida Salomão não perdeu a oportunidade e convidou essa sumidade em saúde pública para assessorar a secretária municipal de saúde Ana Pimentel. Logo que Ivan Chebli assumiu a pasta, Eliotério foi encarregado de coordenar o Comitê Técnico de Saúde Integral da População Negra. Até hoje assessora conselhos e acompanha o secretário nos programas da saúde da família e nas Unidades Básicas de Saúde UBS.
Fernando colocou como meta as grandes dificuldades, convidado pela prefeita para reestruturar o comitê. Ele logo trouxe novas idéias como a proposta de reformulação do comitê com mais presenças da UFJF, dos movimentos negros, etc. A liderança de Eliotério foi marcante nessa mudança, pois ajudou a criar a Política Municipal de Saúde Integral da População Negra. “Atualmente somente 60 municípios brasileiros contam com um documento como esse”, revela. Uma conquista agora como política institucionalizada, que fica por decreto alterada e perpetuada para as futuras gerações. Com seu poder de articular, Fernando conseguiu que várias secretarias da prefeitura participassem em conjunto. Assim o exemplo de Juiz de Fora ganhou visibilidade estadual e federal, mas Eliotério ainda acha pouco e gostaria que esse projeto andasse mais rápido a nível nacional. Ele admite que: “apesar do tempo lento das políticas públicas, já deixei legado implantado nos projetos-piloto nos bairros Furtado de Menezes, Vila Ideal e Vila Olavo costa”. Ele lamenta, mas entende, que nos territórios a dificuldade de implantar encontra resistência ainda nas lideranças das próprias comunidades. Nada que desmotive esse idealista, pois ele conhece as dificuldades desde sua infância: “não é bom ser negro”, confessa. Na sua opinião, a falta de entendimento histórico e o racismo estrutural ainda dificultam a compreensão.
Em 2023, Eliotério brinca que já poderia se aposentar, mas não pensa em sair da luta pela melhoria da saúde das comunidades negras. Na conversa ele deixa claro que o Brasil precisa de médicos pra “cuidar de gente” e não só para ganhar dinheiro. Seu compromisso de vida se tornou naturalmente a saúde do povo negro, mas confessa que ainda precisamos tirar as políticas do papel, quebrar as resistências das pessoas da gestão de saúde, internas e externas, com muitas oficinas e trabalhos de educação e conscientização da população negra. O que ainda o mais deixa triste e que a população de rua é basicamente negra e doe em seu coração ver o tratamento que as mulheres negras recebem: “é por isso que nunca vou desistir”. Com essa trajetória, realmente nunca deixarão Eliotério descansar, pois ele é um dos maiores especialistas municipal, estadual e nacional na área da saúde da população negra. Em reconhecimento, atualmente teve aprovado por unanimidade o título de cidadão honorário de Juiz de Fora. Mais do que merecido!
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