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Domingo, 13 de Outubro de 2024
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Eliane Moreira – Luta pela Visibilidade Negra

Nossas Riquezas Pretas de Juiz de Fora #011

Alexandre Müller Hill Maestrini
Por Alexandre Müller Hill...
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Eliane Moreira – Luta pela Visibilidade Negra
Eliane Moreira
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Este projeto tem como objetivo destacar os expoentes negros do município de Juiz de Fora e legar exemplos positivos de sucesso de pessoas pretas para as futuras gerações. A reportagem #001 foi sobre Carina Dantas, a #002 foi com Antônio Carlos, a #003 com Geraldeli Rofino, a #004 com Sérgio Félix, a #005 com Fernando Eliotério, a #006 com Maurício Oliveira, a #007 com Ademir Fernandes, a #008 com Gilmara Mariosa, a #009 com Batista Coqueiral, a #010 com Cátia Rosa e agora é a vez de conhecermos a jornalista Eliane Moreira.

Por Alexandre Müller Hill Maestrini

A #011 entrevista é com Eliane Moreira dos Santos, flamenguista, evangélica, nasceu em 30.09.1987, cresceu no bairro Carlos Chagas - zona Norte de Juiz de Fora e é a caçula da família: “tenho um irmão e duas irmãs” (foto abaixo). Ela confessa que infelizmente não conhece sua genealogia, mas já escutou falar que a avó tinha sido “pega no laço” e tanto ela quanto o avô tinham sido muito batalhadores. Eliane é filha do pedreiro Edson Moreira e da mãe Maria Alice dos Santos Moreira, empregada doméstica que trabalhou desde os 11 anos de idade e só pode cursar até a quarta série. A mãe tinha que levar Eliane ainda pequena para a casa de família onde trabalhava, assim a caçulinha foi muito paparicada e cresceu muito agarrada com a mãe: "eu me lembro de ser uma menina muito tímida até a adolescência". Eliane contou que a família vivia muitas privações: "já chegamos a ter que dormir todos no mesmo quarto, não tínhamos luxos e vivíamos em uma casa bem simples, mas nunca passamos fome". Ela foi desde pequena muito estudiosa e se lembra de nunca ter sido reprovada na Escola Estadual Deputado Olavo Costa, lá no bairro Monte Castelo. Lá finalizou a oitava série, sempre com o sonho de um diploma de curso superior e como foi criada na Igreja Evangélica Assembléia de Deus, pedia muita orientação a Deus para ser uma professora.

Como a maioria dos negros no país, Eliane viveu inúmeras situações de preconceito racial na escola, na faculdade e na vida. Por muito tempo ela nem sabia que estava sendo vítima de preconceito racial estrutural, porque ainda não tinha se despertado para isso: “era uma coisa que me chamava muito atenção, mas eu não tinha a verdadeira noção”. No ambiente religioso Eliane conta que: “algumas situações na igreja evangélica já me incomodavam muito”, mas a gota d’agua foi a questão dos pastores ou missionários. Ela percebeu que: “mesmo sendo negros, quase nenhum deles era casado com uma mulher negra”, e ela se questionava “cadê as mulheres”? Assim ela cresceu sem ter uma única mulher negra na igreja para se inspirar. Inconsciente era também a frustração de nunca ter visto damas de honra negras nos casamentos: "eu e minhas irmãs nunca fomos convidadas para sermos damas", eram sempre as meninas mais branquinhas, consideradas bonitinhas, no altar. Quando seus olhos se abriram para a questão racial, teve a certeza que ali tinha alguma coisa errada.
Querendo ser professora, quando estava na quinta série ela começou a se envolver no ambiente escolar e passou a estagiar como voluntária com uma professora na Escola Estadual Deputado Olavo Costa. Sua vida mudaria com a formação educacional, no terceiro ano do ensino médio consegui uma boa pontuação no ENEM, mas como não tinha computador e menos ainda internet, pediu a irmã mais velha que trabalhava num escritório de advocacia para fazer a inscrição dela para três cursos. Eliane foi aprovada para Comunicação Social na Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora que fica na zona sul, perto do Carrefour, e ela morava na zona norte: “eu tinha que atravessar toda a cidade para estudar”, foi um desafio de tempo, logístico e financeiro para quem não tinha dinheiro. Em 2006 Eliane Moreira entrou para a Faculdade Estácio de Sá em Juiz de Fora na sua graduação em Comunicação e Jornalismo.
Eliane percebe atualmente nas suas redes sociais uma natural preocupação com a questão racial e da discriminação. Ela começou a se posicionar mais quando se descobriu negra: “pode parecer absurdo, mas a gente não nasce sabendo que é negro”, na verdade os negros se descobrem em algum momento da vida. Por exemplo na escola quando alguém aponta pra você, faz uma brincadeira do “cabelo duro, do cabelo ruim” ou quando ouve-se algum comentário sobre negro "ou te chamam de macaco”. Eliane ainda encarava como brincadeira e contou que: ”nem todo negro tem essa consciência racial automática”, as vezes são crianças ou adolescentes e tentamos explicar que ele é negro ou que ela é negra. Mas o que significa ser negra, Eliane foi aprender de verdade só na faculdade, quando começou a ler mais sobre o assunto e a conversar mais com pessoas envolvidas no assunto. Ela teve o privilégio raro de ter dois professores universitários negros na Faculdade Estácio de Sá, o Antônio Carlos da Hora e Tâmara Lis, que mostraram para ela que é possível sim. Nem na escola Eliane se lembra de ter tido professores negros e a única referência negra era a apresentadora da TV Globo Glória Maria e a Joyce Ribeiro da TV Cultura. Eliane comentou que o racismo ainda é muito velado, são as vezes só olhares, falas sutis ou alguns impedimentos não declarados: “o negro não tem a mesma oportunidade que uma pessoa branca”, nesse caso o negro está sendo invisibilizado. Hoje bem extrovertida ela tem exposto exatamente isso abertamente em suas redes sociais.

Eliane não usou cota racial porque ingressou na faculdade por nota e por questão financeira foi bolsista do ProUni (Programa Universidade para Todos) – e era justamente esse programa que garantia a universidade particular para quem tivesse uma nota boa no ENEM, assim ela conseguiu uma bolsa de 100% integral. Durante os primeiros seis meses ela só pegava o ônibus até o centro e continuava a pé. Só lá dentro da faculdade é que aprendeu o que era comunicação social e jornalismo. Diante de tanta dificuldade, uma oportunidade de ouro se abriu em 2009 quando conseguiu um estágio na assessoria de comunicação da Prefeitura de Juiz de Fora, depois estagiária na TVE – Rede Minas, depois foi para um estágio na TV Record e “aos poucos as coisas foram melhorando”, lembra. Como Eliane disse, para a glória de Deus, em 2010 – contra todas as expectativas de uma negra e pobre – ela se formou em comunicação social com habilitação em jornalismo: "fui a primeira pessoa da minha família a ter um diploma universitário", e pasmem, 135 anos após a abolição dos escravizados no Brasil. Então, será que a escravidão já acabou mesmo?

Depois de formada, a partir de 2011, trabalhou como contratada na mesma TV Record MG como produtora em Montes Claros, em 2017 se tornou repórter no sul de Minas até 2018. Quando começou a trabalhar na televisão desenvolveu um outro olhar do tipo: “Uai cadê os negros nos destaques da TV”? Situações como essa nos mostra um caminho sem volta de consciência racional sobre o racismo. Hoje nas universidades já encontramos muitos negros, mas no mercado de trabalho ainda não. Na faculdade Eliane tinha outros três amigos negros, mas como eu somente o Joubertt Telles, hoje na Rádio Itatiaia, trabalha na área do jornalismo, as outras duas não: “eu comecei a ficar atenta para essa questão da presença negra no mercado de trabalho”. Mas foi só em 2017 que: “realmente descobri minha negritude” e isso a incomodava muito, assim começou a lutar conta o racismo. Para ela não é preciso ser negro para combater o racismo, mas sim ser gente e cidadão e enxergar o outro igual a você. O glamour da televisão é uma ilusão, “a gente não é rico”, jornalistas tem um salário normal, levantam cedo, trabalham as vezes passando mal, aguentam desaforo, etc. Mas quando ela passou a fazer reportagens o fato dela ser um exemplo de sucesso negro “gritou” na sua consciência. Ela conta que numa reportagem na UPA sobre vacinação uma menina pequena olhou pra Eliane e falou: “eu fico assistindo você na TV e acho lindo você ter o cabelo como o meu”, o cabelo como sensação de pertencimento é maravilhoso. Foi só um comentário infantil, mas que fez sua vida fazer um sentido enorme, confessou que ela é filha de um pedreiro e uma empregada doméstica, mas hoje ocupa uma posição que antes “não eram espaços de pessoas negras”. Eliane, Joubertt, Antônio Hora, Tâmara Lis e muitos outros estão conseguindo contribuir para mudar as cabeças de muitas crianças e jovens negros.

A questão do cabelo é muito importante para os negros: “nos filmes de Hollywood o cabelo é sempre liso e mesmo uma pobre era uma pobre bonita do cabelo liso”; não tinha princesas negras, não é? De certa forma isso “foi treinando a nossa mente, é doutrinação pura”! Por isso muitas meninas ainda querem alisar os cabelos, querem “parecer branca ou loira” até se o momento de despertar, e esse processo é individual. Não podemos criticar quem ainda não se descobriu negro. É preciso entender que as vezes não é que o negro não “quer ser” negro, ele na verdade não quer “ser tratado” como inferior. Muito interessante também é a questão do negro mais retinto, mais escuro, mais claro: “a gente sofre racismo em diferentes níveis” dependendo do tom de pele, do tipo do nariz, do tamanho da boca, do cabelo, etc. Então quando você começa a passar pela transição capilar, não dá mais pra esconder o próprio cabelo crespo. Na sua infância Eliane conta que: “não tinha boneca Negra e a gente nascia e crescia sem referência”. Hoje já tem uma bonequinha de menina com cabelo Black, e são lindas. Eliane contou que uma vez fazia uma reportagem sobre preconceito racial e uma pessoa contou que morava na Rua Halfeld e estava indo para a escola com a irmã dela e foram abordadas como se sua mãe fosse faxineira: "as pessoas ligam serviço ao negro” e a dona de casa como uma pessoa branca. A grande luta de Eliane é: “que nossas crianças negras sejam empoderadas e entendam que elas podem tudo sim”. Ela sonha com os negros sendo quem eles querem ser, sem o mundo os impedindo com racismo.
Seu pai era muito ausente e tinha problemas com a bebida. Já o seu exemplo de vida e sua fortaleza foi sempre sua mãe, "a pessoa mais incrível que já conheci", relatou emocionada. Em 2018 a mãe adoeceu e precisou de cuidados; muito apegada, Eliane nem pestanejou, era hora de voltar para Juiz de Fora. Entre 2018 – 2022 iniciou como produtora e com o trabalho reconhecido logo se tornou repórter da TV Integração – Afiliada da Rede Globo em Minas Gerais. O sucesso no trabalho e a tristeza em casa, foram quatro anos de luta contra o câncer: "uma despedida dolorida em 2022 quando mamãe faleceu", Eliane até hoje não consegue acreditar que é verdade: "ainda sonho e sinto a presença dela". A mãe Maria Alice encarou de cabeça erguida todos as dificuldades que a vida colocou no caminho dela, chegou a abrir mão de sua dignidade de mulher para preservar os filhos e ser uma supermãe: "como muitas mulheres de sua geração, mamãe aguentou um marido alcoólatra e violento", coisa impensável atualmente. Eliane se lembra que por cinco vezes a mãe encarou o câncer com uma mulher forte, nunca reclamou da dor, das agulhadas, dos tempos no hospital, da falta de ar, da fraqueza e sempre grata a Deus por tudo. A mãe tinha um sorriso permanente no rosto: “quando mamãe faleceu estávamos de mãos dadas, grudadinhas como sempre fomos”, lembrou cheia de saudades. Com apenas cinco anos de idade Eliane Moreira aprendeu com a mãe a ler e escrever o próprio nome. Na formatura do pré-primário ela era a única que sabia ler e por isso foi a escolhida como oradora. Dentro de casa Eliane aprendeu a ter fé em Deus e ser humilde: “minha mãe me alertava sempre que aparecer na TV não faz ninguém melhor do que ninguém”, mas sim ter caráter e amar o próximo.
Mas a vida guardava mais pérolas para Eliane; um mês depois de perder a mãe para o câncer ela recebeu uma proposta da Rede Record – TV Minas em Belo Horizonte e de agosto de 2022 até o momento Eliane Moreira atua como repórter (veja Eliane atuando). Hoje Eliane tem consciência de sua função, de ser um espelho para as novas gerações e exemplo de representatividade da mulher negra, porém ela lembra e alerta que quanto mais escurinha a cútis, mais preconceito o negro vai sofrer. Normalmente no seu trabalho atual no MG1, ela entra com duas reportagens por dia e ao vivo; para isso precisa estar preparada e maquiada no momento certo, então percebeu outra questão social nos pequenos detalhes: "a maquiadora precisa entender de pele negra, pois é difícil acertar maquiagem baseada em pele branca. Felizmente hoje já temos maquiadoras excelentes para pele negra”. Socialmente engajada, Eliane é a favor do sistema de cotas no ensino e explicou que para entender o sistema precisamos olhar para trás e entender como reparação, por conta de como se deu a estruturação do Brasil: quando foi que o negro foi considerado gente? Quando foi a abolição da escravatura? A partir de quando o negro pode votar? Ela mesmo buscou as respostas, quando terminou a escravidão o branco pensou que: “se o negro era meu escravo e não quer trabalhar para mim de graça, então eu vou chamar um imigrante europeu”. Os escravizados sem ter para onde ir foram construir nas favelas e nos subúrbios. Ela conta que aprendeu muito lendo: "no Brasil tinha uma lei que proibia filhos de ex-escravizados de acessarem o ensino público", ou seja, o ensino estudo foi negado para as pessoas negras durante muito tempo. O regime de cotas é portanto somente uma tentativa de compensação e equidade social, isto é, quem tem menos recebe mais. Além de Eliane Moreira ser um exemplo para outros negros, ela é uma exceção, mas sabe e agradece que se ela está aqui hoje é graças à resistência de seus antepassados negros.
Como a maioria das pessoas que trabalham com jornalismo, Eliane têm um sonho de trabalhar numa grande emissora, que não seja uma afiliada e ser apresentadora de um programa como uma revista semanal. Ainda em 2023 Eliane espera lançar seu primeiro livro infantil que fará parte de uma coleção da Loja de Roupas Alphabeto, onde ela escreve sobre racismo e contra as desigualdades numa linguagem mais infantil. Para reverter o racismo estrutural é necessário que se “fale” sobre isso: “não adianta esconder o problema que temos” e o problema é tanto de brancos como de pretos. Para se fortalecer mais ainda, Eliane tem ainda um grande sonho de conhecer a terra-mãe África de seus antepassados.

Receba notícias da RCWTV no Whatsapp e fique bem informado! Na sequência pretendo ainda publicar muitas entrevistas com Rita Felix professora e escritora, Giane Elisa presidente da Funalfa, Jucélio Maria vereador, Negro Bussola empreendedor social, Reginaldo Barbosa Lixarte, Denilson Bento escritor, Angela Maria Lopes Livraria Ca D’Ori, Paulo César Magela redator-chefe da TM, Paulo Zacarias presidente do MNU, Martvs Chagas secretário, Valquiria Marcia Tiodoro, Júlio Black jornalista, Paul Almeida professor, Marcony Coutinho MNU, Osvair batuque, Roberto Belfort, Mariano Batuque e Régis da Vila samba, etc.

Alexandre Müller Hill Maestrini

Publicado por:

Alexandre Müller Hill Maestrini

Alexandre Müller Hill Maestrini é professor de alemão no Instituto Autobahn e autor de quatro livros: Cerveja, Alemães e Juiz de Fora, Franz Hill – Diário de um Imigrante Alemão, Lindolfo Hill – Um outro olhar para a esquerda e Arte Sutil.

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