O objetivo dessa série é dar visibilidade para aqueles que a sociedade sempre tentou tornar invisíveis. Assim nasceu a série Nossas Riquezas Pretas de Juiz de Fora. O #NossasRiquezasPretasJF é um projeto antirracista do Instituto Autobahn que visa destacar os expoentes negros do município de Juiz de Fora e legar exemplos positivos de sucesso para as futuras gerações. Iniciado em 2023 com o formato de coluna na RCWTV, a reportagem #001 foi sobre Carina Dantas, #002 Antônio Carlos, #003 Geraldeli Rofino, #004 Sérgio Félix, #005 Fernando Eliotério, #006 Maurício Oliveira, #007 Ademir Fernandes, #008 Gilmara Mariosa, #009 Batista Coqueiral, #010 Cátia Rosa, #011 Eliane Moreira, #012 Antônio Hora, #013 Ana Torquato, #014 Alessandra Benony, #015 Sil Andrade, #016 Joubertt Telles, #017 Edinho Negresco, #018 Denilson Bento, #019 Digo Alves, #020 Suely Gervásio, #021 Tânia Black, #022 Jucelio Maria, #023 Robson Marques, #024 Lucimar Brasil, #025 Dagna Costa, #026 Gilmara Santos, #027 Jorge Silva, #028 Jorge Júnior, #029 Sandra Silva, #030 Vanda Ferreira, #031 Lidianne Pereira, #032 Gerson Martins, #033 Adenilde Petrina, #034 Hudson Nascimento, #035 Olívia Rosa, #036 Wilker Moroni, #037 Willian Cruz, #038 Sandra Portella, #039 Dandara Felícia, #040 Vitor Lima, #041 Elias Arruda, #042 Bruno Narciso, #043 Régis da Vila, #044 Claudio Quarup, #045 Wellington Alves, #046 Lucimar Silvério, #047 Paul Almeida, #048 Negro Bússola, #049 Zélia Lima e #050 Paulo Cesar Magella.
Catia Luciana Rosa Marcelo é neta de Maria dos Santos Rosa e Sebastiana Xavier Ribeiro, filha de Maria Lúcia Ribeiro Rosa, mãe de Karen Rosa e avó de Maria Alice Rosa. Muito ligada à família, abriu a entrevista confessando que: "doeu ver crianças negras privadas das referências necessárias para uma identificação positiva e permanente com sua negritude". Catia não conhece quase nada sobre sua genealogia, pois não teve muito contato com seus avós maternos e o avô paterno, todos faleceram muito cedo quando ela ainda era criança. Lamenta que a avó paterna era muito distante e não tínhamos muito contato físico, assim não tem lembranças de carinho, cuidado, etc dos avós.
Sua memória familiar - como de muitos negros no Brasil - começa no pai Sebastião Rodrigues Rosa, auxiliar de serviços e copeiro do antigo SESI e na mãe Dona Lucinha, empregada doméstica e copeira aposentada. A mãe sempre foi a guerreira, batalhadora e era “uma pessoa muito ativa, dinâmica, com uma alegria imensa de viver”, lembra. Catia lembra que a mãe aos 70 anos resolveu seguir o exemplo da filha e retomou o ensino médio na comunidade, pois amava estudar, mas em 2021, sem ter a oportunidade de se vacinar e se isolar como muitos negros e pobres no Brasil, foi contaminada pelo COVID-19 e faleceu em menos de 15 dias: “foi um dos momentos mais tristes e revoltantes da minha vida”. Meus pais sempre passaram muitas dificuldades financeiras e lutavam muito para não deixarem faltar o básico dentro de casa. Mas sei que eles não concluíram nem o Ensino Fundamental, pois não viam no estudo uma possibilidade de acessão profissional. Para os pais, a prioridade era ajudar financeiramente os filhos através do trabalho e mesmo sem estudos, o pai deixou para os filhos o legado enorme da leitura: “ele sempre me incentivava a ler com ele”, como tinha acesso aos livros do SESI, trazia diariamente livros e revistinhas para Catia e o irmão, dois anos mais velho que ela.
Catia nasceu em 1968 e se lembra de ainda menina ter que subir em um banquinho para fazer comida para seu irmão: “não tenho recordações boas da minha infância, pois éramos privados de muitas coisas, devido à precariedade em que vivíamos”, confessa. Com carinho fala da falta dos avós maternos Sebastiana Xavier Ribeiro e Valdemar Ribeiro. Com os avós paternos Maria dos Santos Rosa e Sebastião Maximiliano Rosa teve também pouca, mas moravam nos fundos da casa deles e para assistir TV, ficavam do lado de fora e assistiam pela fresta da porta, pois não tinham a liberdade de entrar junto com os primos: “sentíamos rejeição”. Catia se criou na comunidade, pertinho da Escola Estadual Teodorico Ribeiro de Assis, ela esteve sempre pertinho do seu sonho, mas precisou ganhar dinheiro: “tive que realizar os serviços domésticos muito cedo para ajudar minha mãe nas despesas”. Na época Catia finalizou só o ensino fundamental, não pode cursar o ensino médio e teve que passar 20 anos sem estudar. Para sua tristeza, muito cedo ela teve que abandonar os estudos, pois os pais achavam mais vantajoso ir trabalhar.
Catia se lembra com alegria que seu pai era muito conhecido no bairro como Diretor da Escola de Samba Juventude Imperial: “papai amava o samba”. Ele faleceu em 2012 e deixou um buraco insuperável: “eu tinha uma ligação muito forte com ele, éramos muito parecidos fisicamente e no jeitinho calmo e sereno de ser”. Como muitas meninas da comunidade, em 1987, com apenas 18 anos casou-se com César Pretinho, que trabalhava como balconista no comércio, e aos 20 anos já se tornou mãe da Karen Rosa. A batalhadora Catia trabalhou em malharias, fábricas de jeans, cortou e costurou até se tornar faxineira na escola próxima de sua casa, onde foi contratada para serviços gerais durante dez anos na sua escola de infância, no Bairro Furtado de Menezes. Ela confessa que: “quando varria as salas de aula ficava encantada com a profissão de professora e pedia a Deus para ser professora também”. Como seu pai sempre a presenteava com livros, ainda como faxineira ela lia muito e já auxiliava os educadores em diversas funções, mas nunca poderia imaginar que um dia seria uma professora. Era como um sonho impossível.
Providência Divina? Uma porta se fechou: "perdi o emprego de faxineira", mas logo outra porta se abriu. Surgiu uma oportunidade dela entrar no curso do ensino medio no projeto EJA (Educação para Jovens e Adultos) no Curumim do bairro Vila Olavo Costa, perto de sua casa. César sempre a incentivou a retomar seus estudos: “meu marido acreditava no meu potencial e confiava que eu chegaria longe”. Depois de um dia inteiro trabalhando, caminhava morro acima todo dia para estudar das 18h30 às 22h30. A formatura do ensino médio foi no auditório do CES-Academia - que participava do projeto da ONG Vivo Rio - e a faculdade prometeu dez bolsas integrais para os dez primeiros colocados: “fui uma delas”, sorri.
Catia sentia-se mais perto da sua missão de vida: “tornar-me uma educadora para ajudar a formar pessoas críticas e reflexivas, que respeitem e explorem a riqueza das diferenças”. Emocionada, sem dinheiro e ainda sem acreditar na realidade, a nova aluna de pedagogia passou a ir sempre a pé para a faculdade no prédio do Colégio Academia, na Rua Halfeld parte alta. Ela outras amigas ficaram famosas na paróquia que as convidava para falar e servir de exemplo para os jovens, mostrando que existem outros caminhos, que não o das drogas e da violência. Mas ela conta que: “na faculdade não foi fácil, pois sofremos muito por sermos negras bolsistas e deu até vontade de desistir”. Na verdade o que não a deixou desistir da faculdade foi o sonho de tentar modificar o futuro de muitas crianças, através de uma educação de qualidade antirracista.
Durante a graduação Catia já assumiu um cargo de secretaria na “sua” escola onde ficou por cinco anos. Sabia que estava na direção certa do sonho de lecionar. Catia conta que apesar de ter merecido a bolsa, sofreu muito preconceito, estudava muito, pois não queria caridade. Se perguntava: “por que alguns jovens de favela, de comunidade, vão para a faculdade e outros vão para o mundo do tráfico”. Ela contou que as vezes durante os trabalhos de grupo algumas alunas se recusaram a trabalhar juntas com as “pretas”: “isso humilhava muito”. Foi para casa chorando com vontade de desistir: “pensei que aquele não era mesmo meu lugar por eu ser negra, pobre e bolsista”. Outra vez ela esbarrou em uma aluna e percebeu a cara de nojo: “ela deve ter achado que meu toque a contaminou”. Felizmente Catia não desistiu e se tornou a primeira da família com diploma universitário, mas nunca esqueceu suas origens e em seu trabalho de conclusão do curso de pedagogia escreveu que: “é importante educar para a igualdade étnico-racial”. Seu trabalho recebeu nota máxima e é o exemplo vivo de uma vitória racial.
Catia queria ter logo uma experiência como professora e corajosamente pediu exoneração do cargo de serviços gerais e foi designada para dar aula na mesma Escola Estadual Teodorico Ribeiro de Assis: “me lembro dos alunos e professores me acolhendo de braços abertos”. Atualmente é ela quem ajuda muita gente com trajetórias de vida parecidas: “depois elas voltam para contar e agradecer pelo exemplo e inspiração”. Seu maior segredo é o amor: “tratar com ignorância não segura os alunos dentro do ambiente escolar, pois brutalidade eles já têm lá fora”. Catia busca fazer diferente do que recebeu, dá abraços, conversa e se precisarem; até colo e um lanche: “não admito violência”. Ela sonha com uma educação que liberte e hoje mostra pra muita gente que existem outros caminhos possíveis: “um deles é através da educação”.
Depois de três anos como professora apareceu uma vaga de diretora e todos a apoiaram para tentar o cargo. Ela fez a prova de certificação para direção escolar e teve outro sucesso com aprovação máxima! Quando Catia aos 49 anos entrou pela primeira vez como diretora na sua escola, percebeu que a dedicação valeu a pena, mas sabia que ainda era preciso lutar pela escola e defender seus alunos. Como diretora aos poucos conseguiu retornar com cinco turmas em período integral e oito regulares. Ela se lembra da mãe orgulhosa dela falando pra todo mundo que a filha dela tinha sido faxineira e hoje é diretora. Dona Lucinha - a mãe coruja - plastificava os jornais com uma reportagem sobre Catia e saia no bairro mostrando a todos. Em 2017 o Vereador Júlio Obama Jr. conferiu à Catia uma merecida Moção de Aplauso da Câmara Municipal de Juiz de Fora pela brilhante atuação em sua carreira na Educação e como diretora da Escola Estadual Teodorico Ribeiro de Assis. Em 2020 na Câmara de Vereadores acompanhou a filha para receber a Medalha Rosa Cabinda: “me lembro que os olhinhos da minha mãe brilhavam de felicidade e orgulho”.
A luta de Catia foi sempre realizar um trabalho direcionado a igualdade racial e promover oportunidades para as crianças de sua comunidade, pois ela sentiu e ainda sente na pele o que é o racismo estrutural, o preconceito e a discriminação e trabalha para que seus alunos não passem por isso. Pensando nisso buscou implantar projetos diversificados na escola, no contra turno, aos sábados, domingos e feriados, para mostrar que: “existem sim outros caminhos além das drogas e da criminalidade”. Tudo que ela faz é na intenção de elevar a autoestima de todos e mostrar que para superar esse problema ético racial e os assassinatos de jovens negros é necessário dar oportunidades e perspectivas. Nos passeios mostra que existem outras realidades, além das que os cercam no bairro. Com parceiros e professoras, leva os alunos em piscinas, cinemas, teatros, museu, Parque da Lajinha e etc: “o retorno era imediato”, pois não existe dinheiro que pague a satisfação de ver a felicidade em cada rostinho. Para ela a Educação antirracista deve começar cedo, desde a educação infantil: “acho extremamente importante trabalhar esses conceitos e reforçar a autoestima das crianças negras”. Meu objetivo maior é criar oportunidades diversificadas para as crianças de nossa comunidade através de projetos e estender para toda cidade: “eu sempre falo que a educação é libertadora e me libertou”.
Catia sofreu muito com o racismo na escola desde cedo e principalmente na faculdade, por isso sempre buscou levar mais capacitação para os educadores, para que eles estejam bem preparados para trabalhar com essa temática e principalmente a autoestima das crianças negras: "os resultados são surpreendentes", confessa. No turno da noite combinamos aula de capoeira (vídeo) com o Mestre Maninho, duas vezes por semana na escola e aulas gratuitas também a toda comunidade.
Dentre outros projetos realizados, Catia destaca as aulas de dança como hip-hop e urbanas, teatro, práticas circenses, balé, percussão, o projeto Gente em Primeiro Lugar e as deliciosas aulas de samba em parceria com a Escola de Samba Juventude Imperial. Esta presidida atualmente pelo Sr. David Chaves e sua esposa Dona Lu Chaves, além disso a escola de samba se tornou uma parceira indispensável para a continuação de alguns outros projetos realizados na escola por disponibilizarem gratuitamente o espaço físico da escola de samba para os pequeninos.
Catia se orgulha da festa da diversidade na semana da consciência negra como apresentações culturais, danças e comidas típicas e a presença de várias pessoas negras de destaque em nossa comunidade. Organizamos bate papos com nossos alunos e familiares, onde relatavam sobre sua trajetória profissional: “momentos inesquecíveis para todos nós”. Entre os convidados estavam ex-alunos, hoje advogados, policiais, professores, dentistas, contadores, padres, engenheiros e cantoras. Os relatos serviram de exemplos e referências positivas para nossos alunos e conseguimos mostrar pessoas com profissões que transformaram suas vidas através da educação. O último foi o Projeto CRESPIM com o músico Rafael Crespo (foto abaixo) com aulas de cavaquinho inicialmente para as crianças da escola, depois estendendo para toda comunidade do bairro e mais tarde para crianças de vários bairros de Juiz de Fora. A escola cumprindo seu papel e sendo um centro de convivência!
Para alegria de Catia, em 2019 a filha Karen, com 30 anos, lhe deu a neta linda Maria Alice: “xodó da vovó” (primeira foto). Porém o luto veio em 2021; quando Catia cuidava da mãe acometida de COVID-19 foi contaminada e internada com embolia pulmonar. Hoje tem sequelas de 30% do pulmão comprometido. Atualmente está afastada para tratamento, mas não vê a hora de voltar ao ambiente escolar. Depois de 29 anos trabalhando na área da educação, ensina para as crianças que: “nunca desistam de sonhar”. Ela ainda encontra tempo para motivar todo mundo na comunidade a investirem na própria educação pessoal. Ela lamenta que: “no meu querido bairro não existe nem praça, nem parque de diversão e nem espaço para lazer para as crianças”. Ao final ela resume sua dor dizendo que as pessoas são boas, mas onde falta o Estado e as oportunidades, a marginalidade domina: “como consequência em cada esquina vemos um jovem infelizmente cooptado pelo tráfico de drogas”. O sonho de Catia é ver políticas públicas de qualidade nos bairros mais carentes para tentar diminuir a violência que cerca as crianças.
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