O objetivo dessa série é dar visibilidade para aqueles que a sociedade sempre tentou tornar invisíveis. Assim nasceu a série Nossas Riquezas Pretas de Juiz de Fora. O #NossasRiquezasPretasJF é um projeto antirracista do Instituto Autobahn que visa destacar os expoentes negros do município de Juiz de Fora e legar exemplos positivos de sucesso para as futuras gerações. Iniciado em 2023 com o formato de coluna no Portal de Notícias RCWTV, a reportagem #001 foi sobre Carina Dantas, #002 Antônio Carlos, #003 Geraldeli Rofino, #004 Sérgio Félix, #005 Fernando Elioterio, #006 Maurício Oliveira, #007 Ademir Fernandes, #008 Gilmara Mariosa, #009 Batista Coqueiral, #010 Cátia Rosa, #011 Eliane Moreira, #012 Antônio Hora, #013 Ana Torquato, #014 Alessandra Benony, #015 Sil Andrade, #016 Joubertt Telles, #017 Edinho Negresco, #018 Denilson Bento, #019 Digo Alves, #020 Suely Gervásio, #021 Tânia Black, #022 Jucelio Maria, #023 Robson Marques, #024 Lucimar Brasil, #025 Dagna Costa, #026 Gilmara Santos, #027 Jorge Silva, #028 Jorge Júnior, #029 Sandra Silva, #030 Vanda Ferreira, #031 Lidianne Pereira, #032 Gerson Martins, #033 Adenilde Petrina, #034 Hudson Nascimento, #035 Olívia Rosa, #036 Wilker Moroni, #037 Willian Cruz, #038 Sandra Portella, #039 Dandara Felícia, #040 Vitor Lima, #041 Elias Arruda, #042 Bruno Narciso, #043 Régis da Vila, #044 Claudio Quarup, #045 Wellington Alves, #046 Lucimar Silvério, #047 Paul Almeida, #048 Negro Bússola, #049 Zélia Lima, #050 Paulo Cesar Magella, #051 Samuel Lopes e agora é a vez de Gláucio Anacleto de Almeida.
Por Alexandre Müller Hill Maestrini
Gláucio Anacleto de Almeida é mais conhecido como Mestre ‘Cuité’, com mais de 40 anos de experiência na prática da capoeira e atuante no ensino, pesquisa e divulgação da capoeira no Brasil e no exterior. Bem politizado, ele possui graduação em Filosofia (licenciatura e bacharelado) pela UFJF e graduação em História (licenciatura) pela Faculdade Única, especialização em religiões e religiosidades afro-brasileiras pelo Neab/UFJF. Possui Mestrado em Educação gestão e práticas pedagógicas, Faced/UFJF, além de ser professor de Filosofia da Rede Municipal de Rio das Ostras – RJ. Nada melhor do que começar a biografia vendo o Mestre Cuité em ação na roda de capoeira (vídeo abaixo).
Ele é filho do eletricista Márcio William de Almeida e da enfermeira Ivanir Anacleto dos Santos. Sua criação teve por base três mulheres muito fortes, uma verdadeira trindade divina e ancestral: a mãe, uma mulher de pouco mais de 1,50 m conhecida como ‘Vandinha’, mas também a tia-avó Alzira Anacleto e a bisavó materna Derminda Gabriela de Jesus dos Santos, conhecida como Vó ‘Inda’: “quando eu nasci minha bisavó já tinha 76 anos de idade”, comentou. Essas duas se desdobraram na educação e no desenvolvimento de Gláucio, pois a mãe trabalhava fora como servidora de saúde do Estado de Minas Gerais.
Foi a bisavó ‘Inda’ quem mais influenciou o menino: “tive o privilégio de ter ela por perto até os meus 23 anos de idade. Era a convivência de uma anciã e uma criança em formação, pois minha mãe sempre trabalhou fora”. Matriarca, sua bisavó, apesar de não ter conhecido as letras era uma pessoa de extrema sabedoria: “Curiosamente, como minha mãe tinha perdido a mãe com um mês de idade, quem cuidou dela foram os avós paternos dela Derminda e Eduardo. Vó Inda foi quem criou a minha mãe e ajudou a me criar.” comentou.
Gláucio nasceu em 2.7.1973 e foi criado no bairro Bonfim na rua Carandaí, que depois passou a se chamar rua Sérgio Olavo Costa, mas que todo mundo conhecia como a Rua do Meio, entre a parte mais alta do bairro, o ‘Beco da Geni’ e a rua Barão do Retiro, a principal do bairro: “era um espaço bem demarcado pelas diferenças econômicas. A minha rua foi de terra até os meus 10 ou 11 anos de idade, já a Rua Barão do Retiro era asfaltada”. Mas do ponto de vista das relações interpessoais teve uma infância muito rica: “até os meus 12 anos a gente era criado com muita liberdade brincando entre os colegas de todo o bairro e éramos de alguma forma educados por toda aquela comunidade, por aquelas pessoas mais velhas por quem todos tinham muito respeito”.
Na Zona Leste da cidade as drogas e o tráfico já existiam, mas era uma realidade muito diferente da atual: “quando eu era adolescente, convivi com essa realidade, mas vi e vivenciei também outras coisas”. Sua formação familiar e coletiva foi sólida, por todas aquelas senhoras e aqueles senhores que moravam ali e educavam todos os meninos e meninas: “com grande respeito pelos mais velhos, a gente ia aprendendo na convivência com os colegas, vendo como que era na casa de um, na casa de outro e quando a gente estava na rua também qualquer coisa que era dito, todo mundo acatava de pronto e isso foi muito importante para mim”.
Da família do seu pai Márcio William de Almeida, nascido em Juiz de Fora, Gláucio conheceu só a avó Raimunda Maria de Jesus, o avô Maurício de Almeida já era falecido. O pai é uma pessoa muito reservada e de falar pouco: “sei que na família do pai dele todos eram negros, na família da mãe, haviam descendentes de italianos, mas sem referências documentais. Meu pai ficou órfão muito cedo, com 11 anos e dividia as obrigações de criar os seis irmãos mais novos junto com a mãe dele”.
Do lado materno da família, bem conhecido por Gláucio, todos vieram de Conceição do Formoso – MG. Lá viviam a bisavó Derminda Gabriela de Jesus dos Santos, nascida em 20.3.1897, filha de João Rodrigues Teles (trisavô materno) e da trisavó materna Joanna Pereira de Jesus (na certidão de batismo consta como Joana Maria dos Reis). Derminda foi casada com o bisavô materno Eduardo Anacleto dos Santos, nascido em 05.06.1890, em Bonfim do Pomba – MG. Eduardo era filho da trisavó Joana Maria de Jesus (ou Joana Juscelina de Jesus) e do trisavô Marciano Anacleto dos Santos (trisavô). Os pais de Marciano, os tetravós de Gláucio eram Anacleto dos Santos e Francelina Maria de Jesus.
Os filhos de Derminda e Eduardo ajudavam os pais na lavoura: “meus bisavós maternos moravam e trabalhavam numa fazenda e lá havia um pedacinho de terra onde plantavam para subsistência. O que não produziam era comprado numa venda no povoado, eu considero que ainda era um regime de servidão, poucos anos após a Lei Áurea, quando os escravos foram libertos, mas sem integração social e reparação financeira”, questionou.
Gláucio sabe que Derminda, sua bisavó, com apenas 12 anos, foi levada pelo trisavô João Rodrigues Teles para a casa de uma fazenda, onde ela foi trabalhar, ajudar na cozinha, brincar com a filha do dono da fazenda e ficou lá até se casar: “na verdade, ela ficava na casa cuidando de tudo da cozinha, era companhia das crianças da casa”. Na foto abaixo na esquerda a avó materna de Gláucio, Olinda da Cruz Santos no dia do casamento com o avô materno José Anacleto dos Santos; e na foto do meio abaixo os mesmos avós, José Anacleto e Olinda, com duas crianças que não sabemos quem são (data desconhecida).
(Na foto da direita acima foto do aniversário de 96 anos da bisavó materna ‘Vó Inda’ em 1993). Mas a tia-avó de Gláucio, Alzira Anacleto, se deu conta que aquilo ali estava demais e veio para Juiz de Fora tentar um emprego nos idos dos anos 40: “minha tia-avó começou a trabalhar e depois vieram os outros irmãos, que mais tarde buscaram meus bisavós maternos Eduardo e Derminda”.
Seus familiares se estabeleceram na região do bairro Bonfim, que se chamava ‘Pito Aceso’, e à medida que os filhos foram se casando, se mudaram para bairros próximos como Marumbi, Progresso e São Tarcísio. Os tios-avôs e tias-avós de Gláucio trabalharam como empregados, de domésticas e em fábricas de tecido como a Companhia de Fiação e Tecelagem Santa Cruz e a Companhia Fiação e Tecelagem São Vicente.
Um tio-avô materno de Gláucio, João Anacleto dos Santos foi trabalhar na Cooperativa Central dos Produtores de Leite (CCPL), outro tio-avô materno Jair Anacleto dos Santos foi trabalhar na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. Gláucio cresceu convivendo com essa família numerosa, aglutinada pela bisavó, que impunha um respeito de uma forma muito natural, mesmo falando pouco: “eu fui criado ali ao lado dela e era o neto que a acompanhava nas missas, que a acompanhava nas visitas aos filhos aos domingos”, comentou o privilégio de poder entender como a pessoa idosa vê o mundo, as suas dificuldades, as suas necessidades.
Na infância e adolescência a mãe Ivanir foi a figura mais importante, pela personalidade, pela luta que ela teve: “eu me lembro que a minha mãe era muito procurada no bairro para poder resolver as questões de saúde das pessoas. Era muita gente indo lá para tomar uma injeção e era ela quem saia de casa debaixo de chuva para aplicar injeção em alguém, porque a pessoa já estava doente. A mãe de Cuité era também uma pessoa muito preocupada com a educação e com o futuro do filho: “nós tínhamos um vizinho já adulto que treinava karatê e minha mãe gostou da ideia de me matricular numa atividade orientada ainda bem novo”. Assim, com apenas 5 anos, foi praticar Karatê no antigo Colégio Luiz Gama com o ‘Sensei’ Itamar: “pratiquei dos cinco aos oito anos, mas como era distante e só podia ir aos sábados não dei continuidade.”
O karatê era para aprender a se defender: “mas foi em casa que aprendi os valores fundamentais e a disciplina, mesmo tendo crescido em um meio pobre com suas limitações naturais.” Na foto abaixo da direita em 1979, o karateca Gláucio desfilando na parada de 7 de setembro, representando o Colégio Luiz Gama. Na foto abaixo da esquerda, Gláucio bebê no colo da mãe. No centro abaixo a foto de Cuité em 1978 na frente da casa onde nasceu, na Rua do Meio.
Em 1984, com 11 anos de idade, Gláucio iniciou a prática de capoeira, junto com um grupo de amigos de infância, na Associação de Capoeira do Bonfim, liderado pelo Mestre Pinheiro (José Antônio Pinheiro da Silva), que tinha fundado a associação em 30.09.1972. Os treinamentos dessa manifestação da cultura popular de origem afro-brasileira aconteciam no salão da igreja católica Santa Rita de Cássia, no bairro Bonfim: “eu não tinha ligação com a capoeira nessa época e fui por conta dos amigos, mas sei que meu pai tinha praticado capoeira quando jovem”. Ele contou que como vivia na rua, subindo em árvores, dando saltos mortais, plantando bananeiras e outras brincadeiras com o próprio corpo, quando chegou nos treinos de capoeira, já tinha bastante aptidão: “para mim tudo na capoeira foi muito natural”, lembrou.
A brasilidade da capoeira sempre o encantou: “encontrei música, diversão, uma luta, defesa pessoal, muita camaradagem e pessoas diferentes”, comentou. Naquele momento minha motivação era aprender os movimentos da capoeira, estar junto dos colegas e jogar nas rodas: “mas não pensava que ali seria o início de uma relação que segue ininterrupta até hoje”. O que começou como brincadeira de criança foi se tornando fundamental para sua saúde física e emocional, para a formação da personalidade e hoje, o permite, de alguma forma, retornar à coletividade tudo o que tem aprendido ao longo de quase quatro décadas de vivência cotidiana em rodas, aulas e diversos outros projetos: “para mim a capoeira é uma atitude, de se adaptar ao momento atual com jogo de cintura, como estratégias de sobrevivência”, explicou filosofando.
Como ele começou muito jovem e logo depois fez o processo de desligamento também bem jovem, foi uma ruptura: “aparentemente perde-se toda a referência, mas eu vejo em diversos momentos coisas que permaneceram, no trato com a capoeira e no modo de fazer algumas coisas”. Hoje o experiente Gláucio tem uma preocupação muito grande no modo como ele vai iniciar uma pessoa na capoeira: “sei que isso fica e é marcante, assim como aquilo que acontece na infância tem um reflexo enorme no decorrer da vida”. Para o Mestre Cuité, o início da aprendizagem na capoeira, ou em qualquer outra coisa, deve ser feito com muito cuidado, porque ele deixa marcas. E essas marcas podem ser positivas ou negativas, podem ser benéficas ou traumáticas. Gláucio pensa a vida numa circularidade: “eu volto aquele lugar, mas eu já não sou o mesmo, a situação não é a mesma, e as coisas que eu, em tese, deixei por ali, eu posso resgatar”.
Seu apelido ‘Cuité’ vem do fruto de uma árvore que dá uma cuia, muito usada antigamente pelos escravos. Os maiores cuités serviam como prato ou pote, num formato próximo ao da cabaça do berimbau, feito de abóbora seca: “como eu tenho o hábito de raspar o cabelo desde os 17 anos, recebi o apelido de Cuité pelo formato da minha cabeça raspada”. Nessa mesma época, ainda com 17 anos decidiu se dedicar ao desafio de trabalhar exclusivamente ensinando capoeira, e, ao fazer essa escolha, sentiu a necessidade de buscar mais conhecimentos e melhor qualificação.
Ele ingressou em uma escola de capoeira na cidade de Belo Horizonte – na época, Capoeira Porto de Minas, liderada pelo Mestre Niltinho (Evanildo Lourenço Alves): “ele foi a minha maior e mais longa influência técnica e de desenvolvimento do jogo da capoeira”. Gláucio ficou no grupo por mais de dez anos, até 2001, até alcançar a corda marrom. Alguns termos na Capoeira tem um significado muito forte, por exemplo, no caso da corda (que significa a graduação).
Cuité acredita na atuação política, porque a cultura é política, e a política está no nosso cotidiano: “nas manifestações culturais de origem negra, na vivência plena daquilo que você está fazendo, a ancestralidade, a necessidade do respeito com os mais velhos, de se colocar diante do outro de forma respeitosa e colaborativa”, para ele isso é um ensinamento político muito potente. Para Gláucio ser capoeirista não é só no momento da roda, não é uma atuação somente no momento em que ele está praticando capoeira, ensinando, jogando, tocando, fazendo qualquer coisa diretamente relacionada. Às vezes ele se confessa mais capoeirista quando está, em parte, fora dela do que lá dentro. Essa atitude pessoal ele traz muito forte em si e procura exercitar sempre: “uma paixão que eu tenho é que a cultura afro-brasileira seja mais reconhecida e aproveitada nas nossas relações para podermos avançar politicamente para um Brasil mais verdadeiro”.
Além da capoeira, é apaixonado pelo samba. Na Escola de Samba Imperatriz da Zona Norte, que frequentava com os pais ainda muito pequeno foi que essa ligação começou: “desfilei pela primeira vez aos 11 anos na Feliz Lembrança e passei por várias escolas, na maioria das vezes na bateria, mas já estive em outras funções”, lembrou. Por influência da mãe, que também é mangueirense, Gláucio é frequentador dos ensaios de quadra da Verde e Rosa e da Marquês de Sapucaí. Junto com a esposa Alessandra Lage Monteiro Barros, as filhas Clara (2000) e Alice (2005) formam uma família que acompanha e participa sempre que possível também do carnaval carioca. Foto da família mangueirense abaixo.
Nas Rodas de Capoeira do subúrbio do Rio de Janeiro que Cuité foi forjado musicalmente, complementando as habilidades desenvolvidas com Mestre Niltinho: “ali tem uma musicalidade que brota nas pessoas espontaneamente”. O encantava quando ele chegava no Grupo de Capoeira Quilombo-Nagô, ali na Fazenda Botafogo, perto de Acari – RJ: “aquelas rodas, com aqueles mestres antigos tocando aquelas músicas com a cadência e a fluência musical que eu buscava”. Ele pôde também participar em várias ocasiões de excelentes rodas de capoeira na Baixada Fluminense e em São Gonçalo – RJ nos anos 90 e primeira década de 2000.
Outra grande influência foi o mestre Nestor Capoeira: “no início dos anos 80 ele já fez a minha cabeça no modo de pensar a capoeira e o capoeirista na sociedade. Sua capacidade de interpretação da realidade a partir da capoeira como uma filosofia de vida”. Mas Cuité tem grandes referências da capoeira de Juiz de Fora também: “um legado de escola do importante Mestre Gato do Grupo de Capoeira Corpo e Alma, que foi aluno do Mestre Santos, já falecido, mas que tem discípulos que seguem na Capoeira dentro da mesma linha do Mestre”. Vale citar também o Mestre Amorim do Grupo Meia Lua, que foi aluno do Mestre Marco Aurélio e segue à frente do trabalho há décadas. O Mestre César do Grupo Palmares, que foi aluno do Mestre Pinheiro e que mantém suas atividades na cidade e também em outros Estados. Esses Mestres são referências que transcendem a capoeiragem local.
Para Gláucio, a década de 80 foi uma década de fortes transformações nas Escolas de Samba, no samba como um todo e também na Capoeira: “o mercado chegou com muita força e muitas adaptações foram feitas, nos anos 90 aconteceu um aprofundamento muito grande dessas adaptações”. Para ele, atualmente existe uma busca pela retomada de práticas mais antigas, o que considera natural: “são ciclos que se fecham e outros que se abrem em movimento constante. A cultura não é estática, nem está a parte do que ocorre no cotidiano; ela dialoga com o contexto. Eu hoje pauto as minhas referências muito mais no sentido do coletivo e das práticas coletivas do que em ícones ou pessoas que se destacam”.
Gláucio já trabalhou como técnico em processamento de dados, digitador, monitor de projeto social, instrutor de datilografia, dentre outras atividades: “não sou adepto do discurso salvacionista, as pessoas precisam ter oportunidade de conhecer as coisas para, só assim, decidir pelo melhor para si”. Assim, em 1990 ele abandonou um emprego formal de Monitor do Pró-Criança na AMAC/PJF para se dedicar exclusivamente à capoeira: “tive todo o apoio da minha família”, lembrou. Na verdade, naquela época, Gláucio sobrevivia da capoeira, pois nunca teve uma visão empresarial e isso não colaborava muito com um sucesso financeiro: “me preocupava mais com minha dedicação à capoeira e aos capoeiristas”.
No ano de 1994 Gláucio entrou para a Faculdade de Filosofia da UFJF: “a questão de fundo da filosofia é sobre o sentido das coisas, o que existe quando trabalho com a capoeira. Além disso, só há como ensinar e aprender se houver empatia. Um conteúdo do caderno, para ganhar vida, exige empatia, e capoeira é isso, é muita proximidade. Aprendi com a capoeira como trazer meus alunos de filosofia para perto”. Na foto abaixo na esquerda, Cuité com uma grande inspiração na capoeira nacional, o Mestre Leopoldina, um dos mestres mais importantes do Rio de Janeiro e do Brasil.
Nesse ano de 1994, Gláucio foi convidado pelo Mestre Niltinho para acompanha-lo em uma turnê de apresentações durante seis meses no Japão (foto acima na direita quando saiu numa revista nipônica). Tinha apenas 21 anos, mas para ele foi um amadurecimento importante. Porém foi necessário interromper temporariamente o trabalho e também a faculdade de filosofia recém-iniciada. Durante os dez anos seguintes, ele se dedicou inteiramente a ensinar capoeira num espaço alugado que mantinha no bairro Bonfim.
O Mestre Cuité desenvolveu um trabalho social, enquanto ensinava também em escolas públicas, particulares e vários outros projetos. Em 1997 ele ministrava aulas de capoeira na Escola Municipal Santa Cândida, onde conheceu o professor de história Antônio Carlos Lemos Ferreira que despertou sua curiosidade pela história não contada do Município de Juiz de Fora: “ele abriu meus olhos que os livros de história só contavam aquela história oficial, com grandes nomes de pessoas brancas e supostamente importantes”. Cuité aprendeu outro olhar para como Juiz de Fora foi realmente construída, como ela cresceu e quem foram os atores do desenvolvimento deste município: “a cidade ainda padece de não reconhecer os verdadeiros construtores daqui, que é a população trabalhadora em sua maioria negra e pobre que está na periferia da cidade”.
Gláucio percebeu que a história precisa ser recontada: “a geografia daqui mostra uma realidade. A margem esquerda do Paraibuna, nos bairros das zonas nordeste, leste, sudeste, em sua maioria até hoje tem linhas de ônibus que trafegam somente até a avenida Getúlio Vargas e poucas linhas acessam a Avenida Rio Branco e a zona mais rica”. Cuité reafirmou que isso mostra como no Brasil a pobreza tem cor, e que tudo isso é construído e mantido, sem que as estruturas sociais se modifiquem. Em 1998, na foto abaixo da esquerda, Cuité recebeu a corda roxa e marrom em BH com a presença e jogo com o Mestre Leopoldina. Na foto abaixo da direita Cuité em uma demonstração de suas habilidades no evento que ele mesmo organizou em 1993 em Juiz de Fora.
Em 2001, quando deixaram o Grupo Porto de Minas, Gláucio e o amigo de infância Mestre Léo (Leonardo Costa Pereira) e o amigo de BH ‘Escorpião’, fundaram a Associação de Escolas Besouro Capoeira, em Juiz de Fora, com o foco na atuação nas comunidades: “atuávamos pensando já naquela época na melhora da autoestima, do reconhecimento do território como potência na produção cultural através da capoeira”, comentou. Gláucio faz um trabalho de divulgação da capoeira e enfatiza que ela leva a um processo de transformação: “o trabalho que desenvolvemos é sempre aberto para novas possibilidades, voltado ao novo, mas com um pé na tradição”.
Em 2003 Gláucio foi convidado pelo amigo de Belo Horizonte, Mestre Porquinho (Nayro Ângelo Lopes de Oliveira) da ‘Companhia Pernas Pro Ar’ a participar do seu evento anual de capoeira nas cidades de Colônia e Düsseldorf – Alemanha: “eles são o grupo de capoeira mais antigo na cidade de Colônia”. De volta ao Brasil cheio experiência, em 2004 era hora de retornar para a Universidade e ele prestou novo vestibular para a faculdade de Filosofia, buscando conciliar os estudos com os trabalhos da capoeira: “recebi no curso de Filosofia da UFJF uma formação centrada na tradição idealista de pensadores europeus e também desconectada da realidade do ensino de Filosofia na Educação Básica”. O mais curioso, contou Gláucio: “não havia disciplinas de Filosofia Africana e autores dessa corrente de pensamento não eram abordados nas disciplinas de História da Filosofia”. Nas fotos abaixo, diversas fases de Cuité, mas sempre dedicados à capoeira.
Em 2005 Cuité ainda trabalhava como professor de capoeira da Associação Besouro Capoeira com sede no Centro da cidade e recebeu o prêmio ‘Compositor Geraldo Pereira’, em cerimônia no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas. Sem largar a faculdade, neste mesmo ano iniciou trabalhos na Prefeitura de Juiz de Fora, onde ficou até 2006 como Coordenador de Projeto e das atividades de capoeira do Projeto ‘JF nos Trilhos da Paz’ nas escolas da rede municipal de Juiz de Fora. Para Gláucio: “o projeto reforça o vínculo dos participantes com as ações desenvolvidas nos seus bairros. Também permite ao grupo se ver protagonista da história de sua comunidade”.
Em 2007 concluiu sua graduação em Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora com o trabalho ‘Os Pressupostos e a Fundamentação da Fenomenologia, a odisséia Husserliana’, orientado pelo Prof. Ms. Mário José dos Santos. Quanto ao racismo estrutural, Cuité questiona qual seria o nosso desejo? Modificar, refinar, aperfeiçoar essa estrutura ou queremos abandonar, destruir essa estrutura e construir uma nova? Para ele, a estrutura que sustenta o racismo é uma estrutura herdada do colonizador. Ele sugere pensarmos uma outra forma de organização social, partindo de valores outros que não aqueles eurocentrados: “eu acho que isso remete a uma mudança cultural, que venha a ser uma cultura afro-brasileira e periférica, pois a face mais marcante do Brasil é exatamente a dos oprimidos, que foram sempre deixados à margem da sociedade”.
Gláucio trabalha para uma sociedade mais fraterna, mais justa, que tenha outros valores que não os valores do individualismo, da meritocracia, do lucro a qualquer custo: “onde cooperar passa a ser mais importante que competir”, explicou. Para ele todo pensamento europeu, disseminado pelo mundo, sempre partiu de um pressuposto que havia pessoas melhores e pessoas piores, alguns mais capacitados, outros menos capacitados, alguns que nasceram para mandar e outros para obedecer: “talvez fosse importante que a gente pensasse na superação dele, a ideia de raças foi colocada justamente pelo pensamento eurocêntrico”, filosofou.
Dentro de seu espaço de atuação sempre procura partir dos valores culturais afro-brasileiros que aprendeu em casa com as mulheres que o educaram e são suas referências fundamentais e norteiam as decisões, mesmo que isso lhe traga alguns dissabores. Para ele muitas vezes a única forma de mitigação desse absurdo que é o racismo, passa pela ascensão social e ascensão financeira: “mas tudo isso é parte de uma ilusão, porque enquanto negro, você vai ser negro sempre. Por mais dinheiro que você tenha, por mais importante que seja ou a posição que você ocupe, alguém vai te lembrar que, apesar disso, você é negro”, concluiu, explicando que será necessário pensarmos em um outro tipo de sociabilidade com base na cooperação para aqueles que educamos e formamos hoje, porém “para o adulto racista existe a lei e tem de haver disposição para o enfrentamento jurídico, verbal e físico, se necessário, porque a violência do racismo não poupa os corpos negros” e concluiu que: “logo, o pau que dá em Chico, tem que dar em Francisco, como diria a Vó Inda”, sorriu.
Para o Mestre Cuité é aí que entra a importância da capoeira, por causa da penetração forte nas camadas mais populares que trabalha a autoestima da população negra: “hoje eu gosto de partir da capoeira para entender a sociedade”. A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira, conhecida como patrimônio da nossa cultura, que engloba luta, dança, música, ritual, onde as pessoas participam livremente: “os capoeiristas são guiados pelo toque do berimbau e pelas cantigas, que é a forma de orientação que nós temos”.
O jogo da capoeira se dá como um diálogo, pergunta e resposta, o tempo todo, todas as pessoas podem participar, existe sim uma hierarquia, mas essa hierarquia se dá pela prática, pelo tempo de dedicação à arte. Gláucio explicou que não é nada que esteja vinculado à regra escrita, ao regulamento, por isso a capoeira é realmente inclusiva, todas as pessoas podem participar: “a capoeira é um espaço aberto para todos e é feita para que todos dela se beneficiem, e essa prática também contribui com o coletivo”. (Vídeo abaixo)
Em 2008 prestou concurso para a vaga de professor de filosofia no Município de Rio das Ostras – RJ, onde passou a lecionar em 2012 no Colégio Municipal Profª América Abdalla, conciliando as aulas com o trabalho que já fazia em Juiz de Fora desde 2009 pela Fundação Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) no ‘Programa Gente em Primeiro Lugar’: “ministrei aulas de capoeira nos bairros Marumbi, Santa Rita, Vila Ideal, Caiçaras, Barbosa Lage e São Judas Tadeu”. A partir de 2011 passei a coordenar as atividades de capoeira do programa: “coordenava cinco articuladores que atuavam em 25 bairros e atendemos em alguns momentos até 700 crianças e adolescentes com atividades permanentes dentro do eixo Cultura e Cidadania em todas as regiões da cidade”, lembrou. (Foto abaixo na UFJF durante a entrega de corda)
Desde 2010 Gláucio participa das discussões sobre a Salvaguarda da Capoeira em nível nacional, estadual e municipal, sempre ativo em congressos, encontros e seminários que discutem a Salvaguarda da Capoeira. Reconhecida como bem imaterial da cultura brasileira em 2008, desde então, o Estado brasileiro em todos os níveis deve estabelecer políticas públicas para a sua preservação e desenvolvimento: “essas ações devem ser implementadas a partir das demandas dos capoeiristas e são revistas periodicamente para revalidação do título. O objetivo é preservar as características do bem e investigar a sua situação atual”, comentou.
Ainda em 2010 o Mestre Cuité recebeu da Câmara Municipal a Medalha Nelson Silva, na décima edição. A medalha foi criada para reconhecer e valorizar pessoas que se destacaram na produção e difusão das manifestações artístico-culturais e sociais da raça negra. Nelson Silva (Juiz de Fora 22.01.1928 – 10.10.1969) foi um dos maiores compositores da história do município e do país. Criou sambas, boleros, rumbas, mambos, valsas, toadas, batuques e até hinos religiosos. Seus trabalhos são inquestionáveis, atento permanentemente à situação do negro no Brasil. Com cantos e lamentos, retratou a dura realidade enfrentada pela raça, usando um linguajar típico do negro escravo.
Nas fotos dos medalhistas de 2010 acima com Cuité à direta ladeado por Fernando Elioterio. Na foto da direita acima, já comemorando em família, com a medalha e diploma. Do lado esquerdo de Cuité está o tio-avô Alcides, filho mais velho da bisavó Derminda. Também participaram da homenagem, do lado direito, o pai Márcio William de Almeida. Além deles, a esposa com as duas filhas e uma neta do seu tio Alcides.
Em 2013 Gláucio foi convidado a participar como colaborador do Plano Municipal de Cultura de Juiz de Fora para o decênio 2013-2023. Na ocasião, perguntado sobre sua atividade no ‘Programa Gente em Primeiro Lugar’ coerente com sua filosofia de vida como capoeirista, respondeu: “acredito que é uma forma de retribuir para a população o que ela paga nos seus impostos”. Para Cuité, o acesso à capoeira e às manifestações culturais em geral devem ser facilitadas pelo poder público: “creio que enquanto política pública as crianças precisam ter a oportunidade de conhecer a capoeira, inicialmente sem vinculações com grupos específicos”, ressaltou sua visão pública do jogo.
De volta ao ambiente acadêmico em busca de mais conhecimento sobre suas raízes e ancestralidade, entre 2013 e 2014 Gláucio concluiu uma Especialização em Religiões e Religiosidades Afrobrasileiras na Universidade Federal de Juiz de Fora, com o trabalho ‘As expressões de religiosidade nas cantigas de capoeira’, orientado pelo Prof. Dr. Leonardo de Oliveira Carneiro (in memorian). Para o Mestre Cuité, a prática da capoeira não pode ser desvinculada da música especificamente composta para o jogo, perfeitamente adaptada à dinâmica desse ambiente e que dita a regra nunca escrita, mas sempre vigente: “gingar sempre para atacar, para se defender, para ludibriar ou simplesmente para expressar a alegria de jogar. Sem a música, a capoeira deixa de ser o que é”, explicou.
Em seu artigo de conclusão, Gláucio investigou as expressões de religiosidade presentes nas cantigas de capoeira, um tipo específico de música que expressa os valores, as crenças e as visões de mundo dos seus praticantes com uma riqueza cultural resultante do entrecruzamento de culturas africanas e portuguesa: “nelas os santos católicos e as divindades dos cultos afro-brasileiros sempre coexistiram naturalmente”. Ele também analisou o surgimento na capoeira de movimentos pentecostais que se contrapõem ao uso dessas cantigas, pois buscam legitimar o seu discurso religioso oficial através de composições inspiradas nos louvores evangélicos”, comentou. Mas como bom capoeirista, Gláucio está atento para o risco de que radicalismos religiosos não venham a descaracterizar as cantigas de origem afro-brasileira: “existem tentativas de suprimir ou alterar cantigas que representam uma história de resistência em favor de proselitismos. Estamos alertas quanto à introdução de elementos doutrinários estranhos às tradições desse jogo”.
Em 2020 escreveu o primeiro capÍtulo do livro ‘Capoeira em Múltiplos Olhares’ com o título ‘A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a capoeira’ que relata a experiência da equipe de capoeira do programa ‘Gente e Primeiro Lugar’. Em 2021 passou para o Mestrado em Educação Gestão e Práticas Pedagógicas da UFJF que concluiu em 2023 com o trabalho sobre a capoeira com o tema ‘Ai, ai, aidê, quero saber como vai você: sentidos e percepções de capoeiristas educadoras sobre suas práticas na educação das infâncias’. Ele explicou que esta pesquisa de mestrado estava vinculada à linha de pesquisa ‘Discursos, Práticas, Ideias e Subjetividades em Processos Educativos’ do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O professor e Mestre Cuité destaca que capoeira é comunicação entre pessoas: “é como pergunta/resposta, ataque/defesa, o que gera múltiplas oportunidades de interação”. Para ele, Juiz de Fora passa por um momento especial na capoeira, com grande articulação entre os grupos e a integração fortalece a atividade. Gláucio destaca que, hoje, é possível para o capoeirista encontrar novos horizontes aqui mesmo, o que antes só ocorria nos grandes centros. Apesar de ter vivenciado muitas experiências gratificantes e de muito aprendizado, o Mestre Cuité reafirma que sua praia é mesmo ensinar, seja a Capoeira, a Filosofia e a História.
Decisões seguras começam com informações confiáveis. Não perca nenhuma novidade importante e fique na RCWTV que tem o compromisso de mantê-lo atualizado com tudo o que acontece em sua região e no cenário global. Junte-se ao nosso grupo de WhatsApp e receba as últimas notícias de Juiz de Fora diretamente no seu celular. Clique para mais detalhes e atualizações contínuas, ou visite nosso site www.rcwtv.com.br.