O objetivo dessa série é dar visibilidade para aqueles que a sociedade sempre tentou tornar invisíveis. Assim nasceu a série Nossas Riquezas Pretas de Juiz de Fora. E você? Já sentou com uma pessoa negra para ouvir sua história? Este aqui é o #NossasRiquezasPretasJF, um projeto antirracista do Instituto Autobahn que visa destacar os expoentes negros do município de Juiz de Fora e legar exemplos positivos de sucesso para as futuras gerações. Iniciado em 2023 com o formato de coluna na RCWTV, a reportagem #001 foi sobre Carina Dantas, #002 Antônio Carlos, #003 Geraldeli Rofino, #004 Sérgio Félix, #005 Fernando Eliotério, #006 Maurício Oliveira, #007 Ademir Fernandes, #008 Gilmara Mariosa, #009 Batista Coqueiral, #010 Cátia Rosa, #011 Eliane Moreira, #012 Antônio Hora, #013 Ana Torquato, #014 Alessandra Benony, #015 Sil Andrade, #016 Joubertt Telles, #017 Edinho Negresco, #018 Denilson Bento, #019 Digo Alves, #020 Suely Gervásio, #021 Tânia Black, #022 Jucelio Maria, #023 Robson Marques, #024 Lucimar Brasil, #025 Dagna Costa, #026 Gilmara Santos, #027 Jorge Silva, #028 Jorge Júnior, #029 Sandra Silva, #030 Vanda Ferreira, #031 Lidianne Pereira, #032 Gerson Martins, #033 Adenilde Petrina, #034 Hudson Nascimento, #035 Olívia Rosa, #036 Wilker Moroni, #037 Willian Cruz, #038 Sandra Portella e agora é a vez de Dandara Felícia.
Por Alexandre Müller Hill Maestrini
Dandara Felícia Silva Oliveira é Mestre em Serviço Social pela UFJF, funcionária pública, lutadora ferrenha, transativista pelas transidentidades e desde 1999 na luta pelos direitos humanos. Ela mesma se define como uma travesti bissexual, preta, pobre, não binária, servidora pública, política e militante. Porém sua vida começou diferente, nascida com o gênero biológico masculino e registrada em Juiz de Fora em 10.02.1981. Veja no vídeo abaixo ela mesma se apresentando e depois conheça sua trajetória.
Felizmente ela conseguiu afirmar seu nome social Dandara Felícia Silva Oliveira, uma nova identidade com a qual ela se identifica e que ela comemora como seu renascimento na data 21.11.2018, quando os documentos oficiais lhe garantiram esse novo nome de pessoa rebatizada: “que eu mesma escolhi para mim, numa afirmação da minha própria identidade e das próprias raízes africanas”. Lutadora, ela escolheu “Dandara” como primeiro nome para reverenciar a líder feminina de Palmares que defendeu a liberdade de seu povo. Já com o segundo nome “Felícia” ela decidiu homenagear a avó paterna, Dona Felícia, que era uma combativa sindicalista das tecelãs de Juiz de Fora nos idos de 1940: “só estou aqui e só sou pioneira porque outras estiveram antes de mim e morreram”, afirmou.
Na época que Dandara lutava pelo seu nome social, não era fácil, mas para as novas gerações ficou melhor, comentou: “em 2021 a Câmara Municipal criou a Lei 14.224, que instituiu a utilização do nome social”. A lei assegurou, no Município de Juiz de Fora, que transgêneros, travestis, homens transexuais e mulheres transexuais, tem o direito de utilizar o nome social nos atos e procedimentos da administração direta e indireta municipal. Dandara, muito enfática, fez questão de antemão de explicar que: “Trans não escolhem a prostituição por livre e expontânea vontade, é a sociedade que nos empurra por não nos deixar as portas abertas”.
A primeira vista, quem olha o currículo de Dandara jamais pensaria que ela já se prostituiu: “infelizmente 90% das pessoas transvestigêneres estão no mercado de trabalho informal, normalmente na prostituição, porque a transfobia brasileira serve de barreira para que oportunidades sejam negadas aos indivíduos transexuais”, lamentou. Mas esse é um debate que a ela vem apoiando sobre que tipo de trabalho poderia haver para capacitação de pessoas Trans: “porque a gente não quer aprender crochê, mas sim sonhar com um monte de coisa, queremos ser técnicas em enfermagem ou de farmácia, tratoristas ou motorista de caminhão, engenheiras ou programadoras, criar games e, enfim, o que quisermos”. Questionando a sociedade, lançou a pergunta: “o que está sendo oferecido para as pessoas transvestigêneres, a fim de que elas possam sair das ruas?”. Ela mesmo respondeu que: “é necessário ir mais além e não pensarmos em uma ótica que existem profissões definidas para homens e outras para mulheres, queremos atuar em qualquer profissão”.
O Brasil é uma das maiores sociedades multirraciais do mundo e abriga um contingente significativo de descendentes de africanos dispersos na diáspora. Como uma mistura típica nacional, a família da mãe de Dandara é negra: “não conheci meus antepassados negros pois a escravidão apagou nossa ascendência”. Já por parte de pai sua ascendência é toda branca, ela se lembra de ser considerada branca em casa, mas na escola particular onde estudou era encarada como a única negra: “se na nossa realidade as pessoas brancas são consideradas melhores que pessoas pretas, é claro que essas vão querer ser encaradas como brancas para não sofrer racismo”, questionou expondo as bases do racismo estrutural.
Em sua infância, o primogênito, ou melhor, a primogênita Dandara morava com os pais e os dois irmãos mais novos no Bairro Furtado de Menezes. Dandara cresceu em um modelo de família tradicional interracial brasileira: “minha mãe preta Beletis Conceição da Silva Oliveira cuidava da casa e o meu pai branco Carlos Roberto de Oliveira era técnico em eletrotécnica da Rede Ferroviária e vendia produtos importados”. Seus pais, muito trabalhadores, passaram para a filha a consciência de classe e os pensamentos de esquerda. Meus pais tinham uma condição um pouco melhor que os vizinhos e queriam que a gente tivesse uma educação melhor: “eles sempre pagaram colégios melhores enquanto puderam”. Então desde pequenina sempre soube o que é o racismo: “inclusive o racismo ambiental, nunca um colega de escola foi na casa e no bairro dela fazer trabalho ou estudar”, comentou que o bairro Furtado de Menezes era muito perigoso.
Dandara não conhece sua genealogia: “nós pretos não tivemos este direito pelo processo de apagamento proposital e embranquecimento que os negros sofreram nas histórias de seus antepassados no Brasil. Muitos tiveram seus nomes trocados, documentos queimados tentando apagar as origens dos africanos”. Dandara conheceu seus avós e sabe muito pouco de seus bisavós: “não sei mais nada da minha genealogia. Nós cultuamos nossos ancestrais, mas não nos foi dado o direito de cultuar nossos antepassados genéticos”, explicou seu lamento. Hoje suas referências são as matriarcas do Candomblé e o lado matriarcal da sua família.
Como início das transfobias estruturais sofridas, Dandara se lembra que: “eu tinha 5 anos e a professora da Escola Normal (Instituto Estadual de Educação) chamou minha mãe na escola para apontar que eu tinha uma feminilidade exacerbada”. A professora estava preocupada: “olha, esse menino é líder aqui das meninas, ele só fica no meio delas. Isso não está certo. A senhora precisa tomar uma providência, porque está demais, desse jeito não dá pra o menino ficar aqui na escola”. A mãe de Dandara, muito apavorada, resolveu mudá-la para o Colégio Stella Matutina. Dandara contou que: “essa foi a primeira vez que eu sofri transfobia. Eu estava naquele meio escolar, muito entrosada com as garotas e perdi todas aquelas amizades e tudo o que eu tinha conquistado ali naquela escola”. Mas esse foi só o primeiro: “eu como criança sabia que era homofobia. Cresci com a imagem que no meio escolar eu não poderia mostrar quem eu era de fato”. Ela lamenta que: “no Brasil ainda punem os que sofrem a transfobia estrutural e não aqueles transfóbicos, que saem ilesos do delito”.
Dandara lembrou que a construção travesti começa cedo como identidade; em 1989, aos 8 anos de idade ela se encantou pela personagem Tieta da novela da Globo: “ela era uma mulher infeliz numa cidade pequena, que decidiu sair, ganhar dinheiro e retornar transformada”. Nessa idade, confessou Dandara: “eu já sabia que era travesti, mas não imaginava o que realmente significava isto, só sabia que eu era”. A sociedade patriarcal coloca que o ideal é o homem branco: “mas eu me simpatizei mesmo foi com a Tieta. Eu queria ser uma Tieta”. Dandara ainda era pequena e já gostava de usar as roupas e os saltos da mãe: “escondida é claro”, sorriu da sua molecagem desafiando a cisheternormatividade compulsória imposta pela sociedade.
Em 1994, ela estava com 13 anos e já tinha descoberto que gostava de meninos: “me identificava com o gênero oposto ao meu biológico, me sentia uma menina e por isso fui abusada psicologicamente”, lembrou com tristeza que vivemos até hoje numa sociedade cisheterossexista e machista. Se tivesse escolha, Dandara não teria ido mais para a escola: “porque é muito difícil aguentar a discriminação”. Só no final dos anos 90, e já adolescente, ela assumiu para a família e se recorda que: “minha mãe me pediu que eu prometesse que eu não seria uma travesti”. Sua família nem sempre a apoiou: “mas de qualquer jeito foi fundamental para que eu me tornasse a pessoa que eu sou hoje”. Porém ela sofreu muito assédio na escola: “como jovem, trans e negra da periferia, com muito custo consegui terminar o ensino médio na Escola Estadual Henrique Burnier”. Dandara contou que: “sempre fui muito tolhida em minha criatividade quando criança e adolescente! Até hoje venho tentando vencer o medo”. O tempo foi passando e Dandara logo entendeu que: “só por meio do estudo eu conseguiria alcançar meus objetivos”, e foi fazer cursinho no Curso Meta.
Porém entre 1998 e 2003, foram cinco anos de amargura para ela: “a solução foi ir trabalhar como operadora de caixa, em cafeteria e outros serviços semelhantes; tive centenas de trabalhos que não eram o que eu queria fazer”. Mas o pior era que: “eu ainda não podia ser quem eu queria ser e tive que ir para trabalhos precarizados”. Em 1999 Dandara entrou na militância LGBT e foi a primeira secretária junto ao grupo Movimento Gay de Minas (MGM) em Juiz de Fora: “ele surgiu no final da década de 90 e se articulava em busca de promover ações e pautar políticas de cidadania e direito LGBT”. Um belo dia em 2004, uma amiga dela falou: “olha, você já está com 23 anos, aqui no Brasil você não vai conseguir nada. Vem comigo para a Europa que lá você vai poder ser a travesti que você quer ser, vai conseguir juntar um dinheiro e ter uma vida melhor”, acreditou. Como ela já sabia que a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de somente 35 anos: “me rendi ao encanto de um convite para morar na Europa”. Ilusão destruída: “na verdade fui traficada para a cidade de Pisa, na Itália”.
Como ela caiu no tráfico internacional de pessoas: “fui obrigada a me prostituir na Europa e fiquei presa nessa vida por dois anos, pois os traficantes ficaram com o meu passaporte”. Com pouca comida e sem dinheiro, Dandara tinha que vender seu corpo o dia todo até que: “consegui sair do inferno, conseguir escapar e voltar para o Brasil”. Em meio a tantas dificuldades e humilhações, Dandara chegou em 2006 no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro sem glamour e nem menos dinheiro pra pegar uma condução: “só queria ir para casa, mas voltei também com o emocional e a cabeça totalmente destroçada”. Ela retornou para sua cidade natal Juiz de Fora, mas sem a sua sonhada transformação, sem o dinheiro, sem a fama e sem as roupas de luxo: “podem imaginar como eu voltei destruída, humilhada e deprimida para a casa dos meus pais?”, perguntou respondendo.
Nessa nova fase Dandara se iniciou no Candomblé, outra mudança grande em sua vida: “no Candomblé ficou clara a luta antirracista religiosa, que as espiritualidades de matriz africana ainda sofrem no Brasil, como a demonização”. Além disso Dandara começou um Curso Técnico em Saúde na Escola de Saúde Impacto como bolsista, pois tinha passado em primeiro lugar: “trabalhando nessa área consegui ir morar sozinha”, festejou. Não dava mais pra ficar do jeito que estava. Já no ano seguinte, em 2007, Dandara ficou sabendo que se ela fizesse o ENEM podia conseguir uma bolsa por meio do ProUni pra fazer uma faculdade: “o ProUni mudou a minha vida”, agradeceu as políticas públicas de inclusão. Dandara descobriu que o Programa Universidade Para Todos ofertava bolsas de estudo, integrais e parciais. Ela estudou bastante e em 2007 conseguiu a bolsa para o curso de Gastronomia no Centro de Ensino Superior (CES/JF): “no ambiente universitário pude conhecer outras pessoas, um outro universo e ter acesso aos professores”, confessou realizada que se formou em 2009. Imaginando que agora durante o curso poderia ser ela mesmo, comentou: “resolvi fazer a transição corporal, comecei a tomar hormônios e implantar cabelo”.
A partir dali, ela começou a melhorar sua autoestima e mudar de vida: “vi que eu podia ocupar outros lugares e espaços que nos são negados o tempo todo no Brasil”. Ela se achava muito bem acolhida e começou a perceber que poderia ter sim uma vida digna e ser quem ela queria ser. Começou realmente a transição: “deixei de ser um homem gay para assumir a travesti que eu era”. Mas para ela nada foi fácil: “dois meses se passaram e minha atitude afirmativa parecia começar a incomodar”. Se você leitor/a percebeu que até aqui não tem fotos de criança de Dandara, bem observado: “infelizmente essas não vou conseguir te enviar mais fotos minhas antes dessa época. O motivo principal é porque eu não as tenho! Destrui as fotos de antes da minha transição”, comentou aliviada.
Finalmente Dandara pode começar a construir sua identidade como ela sempre se imaginou. Quando se formou, passou a trabalhar como maítre num restaurante na área central da cidade: “sem muito sucesso mudei o emprego para operadora de telemarketing, onde eu podia ser eu mesma e podia dar pinta”, sorriu. Na entrevista Dandara escancara as desigualdades: “noventa por cento das mulheres trans no Brasil estão compulsoriamente inseridas ou na precarização do trabalho, sem carteira assinada ou empurradas para a prostituição”.
Durante nove anos Dandara ficou nessa, praticamente se violentando: “a gente não pode ser quem a gente é, e eu não podia, nem no ambiente familiar”. Para ela ainda era uma época que não dava para ela se assumir do jeito que ela queria: “foi um tempo de sofrimento”, confessou. Em março de 2016 passou no concurso da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que fazia a gestão do Hospital Universitário da UFJF e se tornou Técnica em Saúde no Hospital Universitário da UFJF, onde trabalhou até 2022. Nesse ano ela passou a atuar como delegada sindical da CUT, mas: “antes de eu fazer a transformação minha vida começou a mudar para melhor; conheci o Thiago em 2016 e em menos de um ano, em 2017, já estávamos casados”.
Sua militância política começou em 2018. Em decorrência da morte da Marielle, Dandara resolveu se filiar ao PSOL: “para mim era inaceitável a falta de acesso a políticas públicas pela população transvestigêneres e a falta de possibilidade que mulheres trans/travestis tem em conseguir ocupar outras posições na vida”. Ela percebeu no crime contra Marielle que: “era preciso ocupar o espaço da política com nossos corpos pretos, transvestis, femininos e de LGBTQIPNB+”. No início de 2019, durante o governo do presidente Bolsonaro, Dandara na luta contra a opressão, fez uma live combatendo as posições da Ministra Damares Alves que: “estamos em nova era, menino veste azul e menina veste rosa”. No vídeo abaixo ela fala abertamente e desmistifica as questões de sexo e gênero.
No vídeo abaixo, como coordenadora do Departamento de Empresas Públicas da CONDSEF/Fenadsef (Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal), Dandara homenageia a comemoração dos 50 anos de StoneWall Inn e comentou que: “não foi a primeira manifestação gay da história, mas a mais marcante delas”. Na verdade em 1970 ativistas LGBTQIA+ organizaram a primeira grande parada do orgulho LGBT do mundo: “o grupo partiu da Rua Christopher, onde fica até hoje o Stonewall Inn, e marchou até o Central Park, em Nova York”. Dandara também falou do quanto não avançamos no Brasil em direito e o quanto ainda temos postos negados. Para completar ela fez uma pequena análise do novo sindicalismo no Brasil e seu olhar sobre a CONDSEF: “criada em 1990, mas que só em 2019 criou internamente um comitê LGBT”, lamentou Dandara, decidida a lutar por mudança.
Nesse ano de 2019, Dandara começou a ocupar os espaços e tomou posse como a primeira travesti preta diretora sindical da base nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ainda nesse ano ela participou da fundação do Centro de Referência LGBTQI+ da UFJF, ao lado do professor da Faculdade de Serviço Social da UFJF, Marco José de Oliveira Duarte: “o Centro de Referência foi criado com intuito de atender as demandas da comunidade LGBTQI+ em Juiz de Fora e promover a cidadania e a garantia de direitos”. Buscando informar a população, Dandara fez um vídeo falando da ativista negra americana Ângela Davis, sobre o feminismo negro, o transsexualismo, a interseccionalidade e o mulherismo africano (vídeo abaixo).
A inciativa partiu do Polo de Referência LGBTQI+ que inclui o Observatório da Diversidade Sexual e de Gênero: políticas, direitos e saúde LGBT, projetos de extensão vinculados à UFJF, além de coletivos, entidades, voluntários, instituições públicas e privadas: “atualmente o centro de referência é coordenado pelo professor Marco José de Oliveira Duarte e está localizado na Casa Helenira Preta, no Bairro Alto dos Passos, em frente a Santa Casa”. O Projeto é vinculado à Pró-Reitoria de Extensão (Proex) e à Faculdade de Serviço Social e o nome Helenira Rezende foi uma homenagem à universitária negra: “uma líder estudantil da USP que se tornou a primeira mulher negra vice-presidente da UNE”. Durante a ditadura foi presa e torturada e executada em 1972 no Araguaia lutando por um mundo melhor.
Em busca de mais conhecimento, ela iniciou um curso de Licenciatura e Ciências Sociais na Universidade Cruzeiro do Sul EAD entre 2019 (que foi terminar em 2021), mas lembrou que: “a faculdade é sempre um lugar de difícil acesso para travestis”. Neste ano Dandara já tinha se tornado uma líder e uma referência na cidade e veio a Pandemia de COVID-19, em 2020 ela foi convidada a participar da LIVE-debate de como a pandemia estava afetando a vida das mulheres Transvestigêneres. Seu engajamento político não tinha mais volta: “me tornei pré-candidata a vereadora por Juiz de Fora e resumi a luta e desafio imposto cotidianamente às mulheres”. Ela afirmou que: “vamos vencer no afeto e é tempo de aquilombar”, citando um poema de Conceição Evaristo.
Este mesmo professor Marco José de Oliveira Duarte acabou se tornando em 2020 o orientador de Dandara no mestrado em Serviço Social na UFJF: “como a maioria das travestis, eu me formei tarde e também entrei tarde para o mestrado”. Nesse mesmo ano Dandara, disposta a lutar em outra instância, oficializou sua candidatura a vereadora pelo PSOL com o objetivo claro de: “ocupar a política com nossos corpos pretos, travestis, femininos e LGBT+”. Ela foi a mulher preta mais votada da história da cidade com 2067 votos. No vídeo abaixo o lançamento da campanha.
Dandara elaborou propostas em alguns eixos temáticos como a vida de todas as mulheres: “a proposta é fortalecer a luta interseccional feminista, priorizar a educação e cultura antirracistas e incluir a temática nas escolas”.
Em maio de 2021, a Prefeitura de Juiz de Fora, criou o Grupo de Trabalho LGBTQIA+ pelo Decreto nº 14.543, para desenvolver a proposta do Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da População LGBTQIA+, que contou com membros do governo, da sociedade civil e de entidades e movimentos sociais: “o objetivo da proposta foi o de garantir a execução de políticas públicas de inclusão e de enfrentamento às desigualdades e discriminações contra a população LGTBQIA+”. Dandara era a representante titular do CeR-LGBTQI+/UFJF. O Plano Municipal (PDF) foi aprovado em 2022, e o Secretário Especial de Direitos Humanos (SEDH), Biel Rocha celebrou a entrega: “reforço o compromisso da atual gestão com todos, todas e todes”. Em outra frente, o Centro de Referência CeR-LGBTQI+/UFJF, após o início da pandemia da COVID-19, criou um grupo das trabalhadoras sexuais transvestigêneres, que demandava ajuda no enfrentamento neste contexto sanitário. Em sua pesquisa de mestrado, Dandara pretendeu entender a precariedade de vida dessas “sujeitas e suas corpas” no trabalho da pista: “queria também analisar o reconhecimento da batalha na rua enquanto trabalho”.
Muito ativa, desde setembro de 2021, Dandara, como uma das fundadoras, desenvolve um trabalho social coordenando a primeira Associação de Travestis, Transgêneres e Transexuais de Juiz de Fora – ASTRA/JF: “a principal atuação da ASTRA é a auto-organização política de travestis, transgêneres e transexuais de Juiz de Fora”. E explicou que: “percebemos que havia uma necessidade de fazer isso, visto que outras organizações tinham o problema de inserir as pessoas trans nas suas lutas políticas”. Dandara continuou falando que: “nossos corpos são só mais uma forma de estar no mundo e enquanto os cisgêneros não entenderem isso, não teremos uma sociedade com capacidade de mudar essa transfobia estrutural”. Os cis são pessoas que se identificam com o sexo com o qual nasceram: “mas ainda existem na sociedade uma tutela do corpo Trans, que normaliza que os corpos Trans se pareçam cada vez mais com os corpos cis”, lamentou. Em um Podcast “Encontros A3” da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), vinculado à Revista A3, de jornalismo científico e cultural, Dandara falou sobre o Dia da Visibilidade Trans. (Áudio abaixo)
Em novembro de 2021 Dandara migra do PSOL para o PT para entrar na disputa por uma cadeira na Assembleia Legislativa como deputada estadual de MG. Nas eleições de 2022 a maioria dos pré-candidatos foram homens cis, aqueles que se identificam com o gênero biológico, mas teve uma quantidade de candidatos e candidatas declarados LGBTQIA+ muito superior do que no pleito anterior em 2018. Foram 320 alternativas a cargos, tanto do Legislativo quanto do Executivo, conforme indicou um levantamento das iniciativas Gay Blog e App Scruff; aumento que, apesar de pequeno, tende a refletir no Congresso Nacional. Entre os partidos, o PSOL foi o campeão em candidaturas LGBTQIA+, com 92 nomes. Nas eleições, Dandara obteve 18.624 votos, mas infelizmente não foi eleita e: “como cena comum na política a maioria dos eleitos foram homens e brancos”, comentou a falta de representatividade. Naquele ano, Dandara foi entrevistada pelo MGTV 1ª Edição – Zona da Mata, no programa “MG Responde” com o tema sobre os direitos das mulheres trans em Juiz de Fora. Desta reportagem fiz um corte das falas de Dandara e a íntegra está disponível no Globoplay para comemorar o mês internacional da mulher.
Ainda em 2022 Dandara qualificou a sua pesquisa de Mestrado em Serviço Social na UFJF, com o tema sobre as relações de trabalho e o trabalho sexual de travestis em Juiz de Fora: “sou a primeira trans negra numa pós-graduação da UFJF”, comentou feliz, porém Dandara lamentou que seu protagonismo é infelizmente o duro retrato da nossa sociedade adoecida. Os pioneirismos dela escancaram onde a sociedade heterossexista, patriarcal e elitista colocam as mulheres travestis e transsexuais, mas principalmente as pretas: “na verdade somos empurradas para os lugares de não ocupação dos espaços”. Dandara humildemente declarou que: “não é porque sou boa, mas sim porque muitas morreram antes de mim ou não sentiram que mereciam estar nesses espaços”. Em uma LIVE em 2022, muito procurada como referência, ela comentou diversos temas caros a ela. (Vídeo abaixo)
Em 28.04.2022 Dandara se tornou a primeira técnico-administrativa (TAE) travesti e preta na história da UFJF e passou a integrar a Comissão Orientadora dos Estágios (COE) da Faculdade de Medicina, lugar que Dandara queria ocupar para estar mais próxima da área educacional: “após todos os anos em que trabalhei no HU, resolvi mudar de área por conta da minha nova formação”. Ela acha que precisamos muito que as pessoas consigam conviver com a diversidade nesse espaço que deve ser plural e diverso, concluiu feliz com a conquista. Em março de 2023, Dandara foi uma das convidadas para falar sobre suas pesquisas no mestrado da UFJF e experiências na LIVE no canal “Anunciar: tempo de cuidar, aprender e transformar”, sobre Relações Étnico-Raciais, Gênero e Sexualidades nas Escolas, durante a Formação Interseccional da Rede Municipal de Ensino em Juiz de Fora. Para esta reportagem fiz um corte das falas de Dandara (abaixo), mas o vídeo completo está no Youtube.
Coroando suas vitórias, em junho de 2023 apresentou com sucesso sua dissertação (PDF) e defendeu a tese “Na quebrada da pista: Precariedade da vida e trabalho sexual de transvestigêneres na cidade de Juiz de Fora/MG”. A mestranda Dandara enfatizou a urgência e a necessidade do acolhimento das diversidades nas universidades: “a academia é extremamente branca, cisgênero e heterossexual, principalmente masculina. Então ocupar este espaço tem a importância de afirmar que travestis e pretas podem sim estar aqui”. Ela afirmou que: “jamais conseguirei expressar em palavras o quanto o percurso da pesquisa acadêmica mudou a minha vida e me fez olhar o mundo e minha vida sob uma outra perspectiva”. O direito a uma formação, que Dandara afirma ser de todos, foi para ela um crescimento que ela deseja para todos: “saio deste mestrado mais humana, mais feliz, mais complacente, mais compreensiva, menos moralista, mais prostituta e cada vez mais não binárie. Estou cada vez mais questionando a binariedade de gênero”.
Na foto acima em dezembro de 2023 com a diretoria do Centro de Referência CeR-LGBTQI+/UFJF, Dandara acha que: “o mundo sofre hoje uma ofensiva anti-gênero protagonizada por figuras famosas e outras nem tanto que parece ter um método e um financiamento”. Por isso, acrescentou que: “nossa luta, muito mais do que acabar aqui, parece estar apenas começando. Com certeza seguiremos no bom combate”. Ela reafirmou todo seu apoio aos LGBTQIA+ na condição primordial de seres humanos que são, e como são: “todos merecem respeito, acatamento e dignidade. Merecem também as chances no mercado de trabalho para a inclusão social de cada um, onde desejarem”. Abaixo a primeira parte do filme “Adoráveis Senhoras” de autoria de Dandara e Giovanna Castro de 2022.
Muito politizada, Dandara considera que: “todes são cidadãos, eleitores, contribuintes de impostos, membro de uma família e seres humanos, com documento de identidade, protegidos e amparados na Constituição Federal de 1988”. Para ela, muitos são discriminados, perseguidos e tem as suas chances de inserção social tolhidas, justamente no momento em que tínhamos no Brasil, um governo neoliberal e homofóbico, como foi o governo de Bolsonaro: “faltou o respeito à condição do ser humano, em seus direitos à liberdade de escolha, de sentir, de agir e, certamente, de como viver”. Dandara filosofa e espera que: “o tempo, como um grande cirurgião, fará essas correções na sociedade, dando a oportunidade a cada um de ser o que deseja, sem a interferência arrogante e desumana que ainda persiste em nosso meio social”. Abaixo a segunda parte do filme “Adoráveis Senhoras” de autoria de Dandara e Giovanna Castro de 2022.
Juiz de Fora tem uma lei que dispõe sobre o tratamento social em clínicas e estabelecimentos públicos e particulares de saúde para travestis, homens trans e mulheres trans. No papel o texto torna obrigatória, nas fichas de pacientes em clínicas de exames médicos ou qualquer outro estabelecimento de saúde privado, a utilização do nome social do paciente ou do nome constante nos documentos retificados, para evitar constrangimento.
Mas como não é essa a realidade: “ainda precisamos avançar muito”, lamentou. Mas ela não para de buscar apoio municipal, estadual e federal para sua luta contra a discriminação (fotos acima). Para finalizar Dandara deu um depoimento triste ainda hoje em 2024: “temos orgulho de ser quem a gente é, mas não temos orgulho de quem nos discrimina”. O que a transativista na luta pelos direitos humanos deseja é que todos, todas e todes tenham respeitado o direito de viver como querem. Como pré-candidata a uma vaga no legislativo municipal em 2024, Dandara espera que a população escolha a primeira vereadora negra da história de Juiz de Fora.
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FONTE/CRÉDITOS: Dandara Felícia
O texto acima expressa a visão de quem o escreveu, não necessariamente a de nosso portal.
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